SANDOR MARAI - CONVERSA DE BOLZANO

– Ser escritor – disse ele num tom natural. – Sou desesperadamente escritor, Balbi, não o digo a ninguém, não gosto das queixas que são ao mesmo tempo presunções. Só a ti o digo, porque por ti não tenho a mínima estima. Pode-se escrever de diversas maneiras. Há os que ficam no quarto, que escrevem e não fazem mais nada. Esses, sim, são felizes. Talvez a vida deles seja infeliz, estão sempre sós, olham para as mulheres como os cães para a lua, uivam ao mundo a sua desgraça, clamam na sua aflição que tudo os faz sofrer, o sol, as estrelas, o outono e a morte. A vida deles é infeliz, e todavia são eles os escritores felizes, vivem para a escrita, não sabem fazer outra coisa, almoçam um nome e adormecem com um belo epíteto macio nos braços. Sonham com um sorriso ofendido nos lábios. E ao despertar, envesgam os olhos para o céu pois vivem no êxtase permanente, no entusiasmo cego de serem capazes de exprimir todos os dias, com adjetivos e substantivos, gaguejando e sem gaguejar, gemendo e uivando, uma coisa que o próprio Deus só uma vez conseguiu fazer. Tais são os escritores felizes, passeiam entre nós com a sua expressão de infortúnio, e as mulheres tratam-nos com doçura e extrema piedade, como se de certo modo eles fossem irmãos um tanto apoucados que elas, como irmãs mais velhas, boas e sensatas, reconfortam e preparam para a morte. Não gostaria de ser um desses escritores – disse ele com uma sombra de desdém na voz. – Não passam de escritores… Depois há os que manejam a pena como o punhal e a espada, que escrevem com sangue, que babam o papel de bílis, vais encontrá-los no seu gabinete de trabalho, com um barrete de dormir na cabeça, a escarnecer dos reis e dos ociosos, dos usurários e dos traidores, são os mercenários e os combatentes de uma ideia ou de qualquer outra causa humana… Conheci um deles. Estive uma vez de visita ao medonho Voltaire. Não me interrompas! Seja como for, nunca ouviste esse nome. Já não tinha dentes mas sabia morder; os reis e as rainhas espreitavam-lhe os humores, e esse impotente desdentado, com uma pena entre os dedos deformados pela artrite, conduzia o mundo como um maestro. Percebes o que te digo?… Eu, sim, eu percebo. Os escritores para os quais a escrita não passa de um instrumento, porque querem mudar o mundo, são escritores infelizes; são poderosos porque possuem a força e o espírito, mas não há neles nem silêncio nem devoção, e é por isso que são infelizes. Com uma só palavra sabem apunhalar um rei ou a ordem do mundo, mas não sabem exprimir um valor mais secreto da vida, quero eu dizer o entusiasmo de se viver no mundo, a felicidade de não se estar só – as estrelas, as mulheres e os demónios preocupam-se connosco – e o espanto de ter que se morrer. É isso que não sabem exprimir aqueles cuja pena não passa de uma espada, de um punhal, por muito poderosos que sejam na terra… reinam sobre os destinos, os tronos, as ordens e a sorte dos homens, mas não têm verdadeiro poder sobre o tempo. E depois há os escritores como eu. São os mais raros – disse ele satisfeito.

– Sim – disse Balbi com um ar de beatitude. – Mas porque são esses os mais raros, meu senhor e mestre?…

A voz do frade, que se tornara rouca e cavernosa por causa da prisão, do vinho e das doenças que apanhara nas estradas, nas quintas e nas camas das cozinheiras, encerrava uma curiosidade respeitosa e uma desconfiança prudente. Estava sentado de boca aberta e fazia girar os polegares, como quem está num teatro onde os atores representam numa língua que o espetador não conhece demasiado bem.

– Porque eu, pelo meu lado, pago com a minha pessoa o que tenho a pagar – disse furiosamente Giacomo –, estás a compreender, meu monte de banha, meu pé chato? Estás a compreender, meu herói de quintas e bordéis? Estás a compreender agora? Sou um escritor que com a sua própria pessoa paga por isso. Perguntas-me o que escrevi?… Confesso que até aqui não escrevi muita coisa. Alguns poemas, sim… alguns estudos sobre a magia… Mas o mais importante não está aí. Fui embaixador, padre, soldado, violinista, doutor em ciências religiosas e profanas – graças a Bettine, que tinha quatorze anos e me iniciou nas ciências profanas, e graças ao doutor Gozzi que, na sala do lado, em Pádua, e sem saber fosse o que fosse das lições de Bettine, me iniciou nos segredos das artes liberais. Mas estou a perder-me, pouco importa o que escrevi. A única coisa que conta, sou eu, o escritor, a pessoa; porque é mais difícil ser alguém do que fazer alguma coisa, vê se percebes agora! Gozzi contesta-o. Gozzi diz que só um mau escritor deseja viver, ao passo que o bom escritor se contenta com escrever. Mas eu refuto a afirmação de Gozzi, porque o combate profano nunca é feito senão de afirmações e refutações fortes e verdadeiras. O que importa sou eu, embora segundo Gozzi seja um mau escritor, eu e só eu, porque o meu desejo é viver. Não seria capaz de escrever enquanto não tivesse conhecido o mundo. Estou ainda no começo – disse ele mais baixo, quase piedosamente. – Tenho quarenta anos, mal vivi ainda. Nunca se vive que chegue. Ainda não vi a aurora vezes bastantes, não conheço ainda nem todas as sensações nem toda as emoções humanas, ainda não me ri o suficiente da fatuidade dos escribas, dos superiores e das autoridades, ainda não fiz engolir quanto baste as palavras que dizem os párocos pançudos que vendem a salvação a troco de dinheiro, ainda não trocei o suficiente da estupidez humana, ainda não me saciei que chegasse com o espetáculo da vaidade, da ambição, da concupiscência, da cupidez dos homens, ainda não acordei vezes que bastem nos braços das mulheres para delas conhecer alguma realidade, essa outra realidade que é bem mais do que o triste segredo indiferente que escondem por debaixo das saias e que só serve para excitar os adolescentes e a imaginação dos poetas… Ainda não vivi o suficiente, Balbi – disse ele com obstinação, numa voz profundamente transtornada. – E não quero perder nada, percebes! Renuncio às honras temporais, renuncio à fortuna, à felicidade de um lar, tenho ainda tempo de sobra antes de me pôr a passear em chinelos à sombra de uma latada a ouvir cantar os pássaros, levando debaixo do braço o De Consolatione Philosophiae de Boécio, o pagão, e Horácio, o sábio, que me ensinou que ao lado de qualquer homem justo se encontram sempre duas divinas irmãs, a ciência e a piedade… Não quero abandonar-me já à piedade. Desejo viver para saber um dia escrever. O que custa muito caro. Tenho de ver tudo, vê se percebes agora, meu companheiro de infortúnio e de galé, tenho de ver os quartos onde as pessoas dormem, tenho de lhes ouvir os queixumes quando começam a envelhecer e já só por meio do ouro podem comprar os favores das mulheres, tenho de conhecer as mães e as irmãs, as amantes e as esposas que me hão de dizer, cada uma delas, alguma coisa verdadeira e digna de fé acerca da vida, que mais não seja dando-me a mão, se não puder ser de outra maneira. Sou escritor, por isso tenho de viver. Gozzi diz que só os maus escritores desejam viver. Mas Gozzi não é um homem, é um rato de biblioteca, cobarde e indolente, que nunca há de criar nada para a posteridade.

– E quando – perguntou Balbi –, quando queres tu pôr-te a escrever, Giacomo? Quero eu dizer, se vais olhar, ouvir, cheirar tudo o que disseste… Quando terás tempo para escrever? Tens razão, eu não percebo nada. Só sei alguma coisa de caligrafia e sei por experiência que, para se escrever uma carta, é realmente preciso muito tempo. Julgava que para escrever, para se fazer o trabalho que fazem os escritores, era preciso ainda mais tempo. Talvez uma vida inteira.

– No fim – respondeu o outro olhando para o teto, e a boca movia-se-lhe sem ruído como se ele estivesse a contar –, quero escrever no fim.

Comentários

  1. Olá !, Gostaria de conhecer os responsáveis do blog; Quero sabe o que fazem e o que se profissionalizaram! Adorei esse blog mas queria conhecer os responsáveis por ele... Por favor se apresentem !

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