AS COISAS DO PAPAI



Para: rays2010@gmail.com
De: TagogaPapua@yahoo.com
Título: As coisas do papai


Rays
Tudo bem?
Recebi uma carta do tio Faipz. Ele disse que a gente precisava passar na tribo para recolher as coisas do papai. Sabia que você não ia querer buscar, então perguntei se tinha algo assim tão valioso que eu teria mesmo que ir até lá. Daí você sabe né? O tio começou com aquela ladainha de tradição, que os espíritos dos nossos ancestrais cobrariam essa atitude e blá blá blá. Então para não ter que ficar ouvindo as mesmas coisas de sempre, falei que ia, mas que não sabia quando.
Não tem nem mais ônibus direto de Jaya Pura para Wamena. Ninguém mais quer viajar para aquele fim de mundo. Todas as pessoas espertas fugiram daquelas montanhas e vieram morar na cidade. É o processo natural né? Eu você, nossos amigos...
Cheguei na tribo sexta de manhã. Parecia que eles já estavam me esperando, todo mundo veio me abraçar, ficaram felizes de ver alguém que não mora mais lá, acho eles nos vêem como mais evoluídos. Aí aquela coisa de sempre, você tem que cumprimentar todo mundo, fazer aqueles rituais idiotas. É um saco. Mas enfim, passei por tudo, peguei as coisas e voltei. Dormi só uma noite na tenda do papai - me senti um herói por dormir com tanto mosquito, não sei como eles aguentam.
Enfim, escrevi mais para contar e dizer que as coisas dele estão todas aqui, então se você quiser que eu mande algo para você ou tire fotos me escreva. No final acabei lembrando de umas histórias legais que a gente viveu lá. Tem umas coisas engraçadas né?
Abs Tagoga  

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Para: rays2010@gmail.com
De: TagogaPapua@yahoo.com
Título: RE  As coisas do papai


Rays
Tudo certo?
Nunca mais tinha pensado nessas lendas de espíritos ancestrais, mas as coisas tem ficado um pouco estranhas desde que as coisas de papai entraram na minha casa.
O tio fez questão que eu trouxesse o koteka dele. Na hora senti um certo nojo de pegar aquilo. No meu trabalho sempre quando digo que sou de de Wamena eles começam a rir e perguntar se eu também uso aquelas cabaças no pau. Com você, deve acontecer o mesmo. Se tenho intimidade, falo que só uso quando visito as mulheres deles. Mas desde que o koteka entrou na minha sala comecei a vê-lo de outro jeito. Nada que eles usavam era a toa, não era só pela proteção, aquilo é virilidade pura. Não sei Rays, mas a relação que temos hoje com as mulheres está muito distorcida. Por isso, as coisas não estão andando bem. Aquele objeto de alguma forma representava a forma correta que devemos nos relacionar com as esposas. Lembro do dia em que mamãe decidiu olhar nos olhos de papai e dizer o que pensava. Você era muito pequeno, não deve lembrar. Eles discutiam sobre uma batalha que ele iria lutar mais para o norte. Ela falou que ele fazia tudo aquilo apenas para sentar no meio da mesa nas festas da tribo, mas que aquilo não significava nada para a vida da nossa família. Ele ficou furioso, bufava, eu ouvia a sua respiração e senti medo por ela. Ele não respondeu, saiu da tenda e voltou com um cipó. Amarrou-a de joelhos, com as mãos atadas nos pés e a cabeça no chão. Ela chorou baixinho, e bateu com a cabeça no chão muitas vezes. Aos poucos foi parando e nunca mais o questionou.
Eu trouxe também o machado de pedra. Não dá para acreditar que eles ainda usam machado de pedra. Ele fica na minha mesa, parece não querer sair dali, resiste ao tempo, perdura como vem perdurando por todos esses anos, resistindo à cultura que se impôs nas montanhas, o gradual extermínio de tudo o que foi construído pelos anciãos. Há coisas que não se pode abandonar e a pedra do machado está ali, rígida e firme na minha mesa, não quer sair. O machado me observa em todas as partes da sala me perguntando o que estou fazendo aqui, o que são todas essas coisas desnecessárias que me circundam e porque me preocupo tanto com elas.
O tio Faipz me contou que o dia em que papai morreu a tribo estava em festa. Fazia tempo que eles não cozinhavam porco naquelas panelas enormes e dançavam na arena. É que tem muita gente que não concorda com os rebeldes, acham inútil lutar para defender nossas tradições, sendo que por lei já somos indonesianos. Mas parece que aquele dia a felicidade era consenso. Ele nunca contou exatamente como aconteceu, mas quando eu toco no arco a cena me vêem nitidamente.
Uns militares armados chegaram na aldeia. Ninguém esperava vê-los ali, especialmente naquele dia de festa. Perguntaram por papai, queriam levá-lo, ele caminhou em direção a eles e mandou-os embora. Um dos soldados acendeu um coquetel molotov e jogou numa cabanha, outro pegou Natera pelos cabelos e ela começou a gritar. Papai não hesitou. Partiu para cima deles e tomou um tiro na nuca. Caiu na frente de todos.
Tenho sentido muito falta dele Rays. Acho que a gente devia se encontrar.

Abs Tagoga.






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