PARA MIM MESMA

 
Eu já tentei contar essa história para algumas pessoas... Acho que é hora de contar para mim mesma, talvez assim, alguma coisa se resolva aqui dentro, quem sabe eu possa mudar.

Começou como começa qualquer dessas histórias, a gente se conheceu num barzinho, tínhamos amigos em comum, acho que foi naquela noite mesmo que nos beijamos e depois fomos dormir juntos. Na verdade, isso não tem muita importância, apenas que aquilo deixou uma semente dentro de mim.

Comecei a me sentir diferente. Mexeu comigo, de verdade. Fiquei mais sensível, mais atenta, não sei, parecia que as cores tinham mais cores, o brilho mais brilho. E aí eu percebia, ou era imaginação, as partes dele se desenvolvendo. Fisicamente eu sabia de tudo o que se passava dentro de mim, sabia mesmo. Mas eu também tinha medo, não me acho preparada para educar alguém. Talvez tenha sido esse medo que me impediu de sentir mais do que sensações físicas. Eu endureci.
Desde pequena, eu ouvia dizer que o amor que uma mãe sente pelo filho é algo inexprimível, que é a mais ampla demonstração deste sentimento, um amor que é maior que tudo, e é aí que começa meu problema. Corporalmente eu sinto essa criança, sinto seus pés, seus braços até sua respiração eu acho, mas nada além disso. Eu não sei se é só comigo que isso já aconteceu. Talvez eu tenha algum problema. Por outro lado, talvez esse amor incondicional seja uma história inventada. Falam que sempre foi assim, mas é mentira. Comecei a ficar tão preocupada com isso que cheguei até a pesquisar - as francesas do século XVIII entregavam seus filhos para as amas de leite e não estavam nem aí para eles, só depois que as crianças já estavam crescidinhas é que voltavam para casa, mas aí foi só os governos saberem que densidade demográfica é importante para a força do Estado que de uma hora para a outra, tchum, toda mulher passou a ter esse “instinto intrínseco de mãe”. Então sei lá, talvez eu apenas não tenha caído nesse conto.
Isso me lembra um pouco aquela vez que o Claúdio me levou para ouvir um concerto de música clássica, era algo meio experimental, sem melodia, com percussões estranhas se entrecortando, ninguém ali estava gostando, vários velinhos dormiam e os jovens pescavam, até ele que se dizia entendido bocejou várias vezes, mas quando terminou, aaaaa aí todo mundo saiu falando que amou, que a performance do maestro foi maravilhosa, que a música era linda e que foi incompreendida na sua época e tal e tal. Acho que o que está acontecendo comigo é meio que isso.
Eu sinto vontade de vomitar. Não é efeito da gravidez, é psicológico, eu sinto uma ânsia horrível, começa com uma dor no coração, aperta aqui em cima e depois desce, dá um enjoo forte em baixo, é como se eu quisesse expulsar isso de dentro de mim. Não sei como dizer isso para minha mãe, ela vai sofrer muito. Isto está me matando é como se minha alma fosse se correndo por dentro. Por que esse amor não vem? Talvez se eu espere mais um pouco ele apareça, surja do nada, assim como um tornado ou uma tempestade de verão que carrega tudo o que está a sua frente. Vou ligar para ela.
- Mãe
- Oi Filha!!
- Tudo bem?
- Tudo.
- Então mãe, queria te pedir uma coisa
- Pode falar.
- Hoje...
- O que?
- É
- Fala filha, já estou ficando preocupada.
- Não, não é nada demais, eu queria só pedir para você fazer bastante salada porque estou começando um regime.
- Aaaaa, já achei que fosse algo sério.
- Não mãe, está tudo certo.


Se digo isso abertamente, que não sinto nada pela criança que está dentro de mim o que as pessoas vão pensar? E também será uma traição com meu filho, ele não merece passar por isso. Talvez seja melhor eu simplesmente dizer que perdi.


-       Rejane?
-       Sim, sou eu.
-       Você pode assinar esses papéis?
(Se estou ciente do que estou fazendo? Quem tem cem por cento de certeza em alguma coisa na vida? Ainda mais isso?)
-       Claro.
-       O Doutor está aguardando você na sala de cirurgia.
-       Quanto tempo leva?
-       Duas horas aproximadamente. Você está em jejum?
-       Sim.
-       Então pode passar.
-       Um minutinho que preciso responder um e-mail


De: Isabelle
Assunto: não tem mais volta
Para: mãe
Mãe você sabe que isso não vai ser uma coisa fácil de se fazer; nem mesmo dizer para você pessoalmente eu tenho coragem, por isso estou escrevendo. Eu não quero isso para mim mãe, e espero que você, sendo a única pessoa que sabe o que estou passando, me entenda.
Vai ser duro para mim fazer isso, mas farei, por convicção, sei do risco, sei de tudo. Estou entrando na sala de cirurgia, não tem mais volta. Saiba que se algo acontecer, eu quero deixar registrado que te amo demais e que estou fazendo isso, pois jamais conseguirei alcançar o grau de amor que você teve por mim por toda a vida.


     

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