O VELHO BURGUÊS


Vem aqui, vou te contar uma coisa. Talvez você não entenda tudo agora, mas é muito importante que saiba. É para a sua vida. Amanhã os americanos estarão aqui. Ah se eu pudesse manipular o tempo... Eu o pararia. Isto tudo está me partindo ao meio, eu precisava de um pouco mais de tempo para pensar. Quem sabe se eu lhe contar tudo as coisas se esclarecem na minha cabeça.  A gente é sempre meio individualista mesmo, não tem jeito. Está vendo aquele quadro ali? Sim, este mesmo. Lindo não? Parece obra da nobreza. Foi ele que começou tudo, meu pai. Nós éramos muito pobres, pobres como a Maria. A Maria que cuida das roupas, sabe? Sim, esta mesmo. Eu acho até que ela mora aqui em casa. Pois ouça bem, passamos por vários momentos difíceis. Mas ele era um homem de muita fibra. Nunca se entregou. Sabe aquela música? “Deixe a vida me levar...” não era a dele. Até porque se fosse, ainda estaríamos morando nos escombros. Mas assim como ele, eu pensava que quando tivéssemos dinheiro tudo se resolveria. Imaginava que as coisas seriam mais tranqüilas e que viver seria sinônimo de prazer. Mas não é assim viu! E é bom que você saiba disto logo. Não se iluda, a vida não vai te poupar de nada. 

Por mais contraditório que possa parecer, a medida que vamos acumulando dinheiro, prestígio e poder as coisas vão piorando. É sério! De tão complexos, os problemas se tornam insolúveis. E vou te dizer uma verdade - a vida não tem solução. Ela é o problema em si, um nó que não se desata. E enquanto houver dentro de nós algum alento, o nó Górdio estará lá. Isto não é ruim, entenda, uma vez eu li um livro que dizia - se você não têm preocupações tome cuidado, você deve estar doente. Precisamos dessas dificuldades, mesmo, a acomodação nos faz perder a forma. Viver é manter-se produzindo.
Sim, você está pegando o espírito da coisa. Também me pergunto isto - se o dinheiro não traz o que esperamos, porque brigamos tanto por ele? Todas as pessoas querem o que nós conseguimos, lutam, se preocupam demais, mas foi só depois que conquistei tudo, que parei para me questionar se era isto mesmo que eu desejava. Não posso negar, o dinheiro é capaz de dar, viagens, saúde, conforto, olhe o meu quarto por exemplo, esta casa, a nossa segurança. Quando era jovem, eu olhava para os endinheirados e pensava “como deve ser querer algo e imediatamente poder ter. Não precisar consultar nada, não fazer nenhum esforço a mais.” Não sei bem se durante minha vida toda eu busquei os bens ou somente esta sensação.
E de uns tempos para cá percebi que o que não se equilibra nesta balança é o custo deste esforço para se ter tudo. Será que não conseguimos viver com menos e termos mais tempo para nós? Ficando juntos, em casa. Este A Mais é que é o ponto. É ele que transforma a almejada liberdade em prisão. Talvez, este A Mais seja a parte inconsciente do enriquecimento. Afinal não é o desejo, mas o medo que produz o A Mais. Não entendeu? Tá bom, vou explicar melhor. Quando não temos nada, sofremos muito. Você sente muito medo. É capaz de qualquer sacrifício para não passar por tudo aquilo de novo. Sim, o medo, medo da dor, medo do frio, da fome, do abandono. Medo da morte. Claro, o pai de todos – o medo da morte. Antes eu pensava que era a vontade de viver que nos estimulava, mas não. É o medo de desaparecer, sim, é ele que me faz ficar acordado à noite pensando nos problemas da empresa, é ele que me faz levantar antes do sol nascer e nem hesitar em ficar na cama, ele que me mantém ativo aos 74 anos.
Sabe, desde que minha filha se foi as coisas se tornaram ainda mais difíceis por aqui. Foi o que eu falei - o dinheiro não resolve. Eu daria tudo o que tenho, sem hesitar, para tê-la pelo menos alguns instantes aqui conosco. Passaria fome, dormiria no frio novamente, choraria de medo. Espera um pouco. Me alcança esse copo com gelo. Há coisas que me ajudam a viver, esta é uma delas. Mas então, quanto mais eu me dedicava a acumular patrimônio para que ela vivesse bem, mais me distanciava dela. Acho que nunca vai sair de mim esta sensação de que eu não a amei, ou pelo menos não expressei, tanto quanto ela merecia.
Ela era diferente dele. Tão diferente que nem parecia irmã. Meu outro filho, sempre quis o que eu tenho, mas ela não. Ela só queria viver, ela era a minha Maria Antonieta. E enquanto ele me chamava para reuniões, ela me levava às vernissages. Eu não gostava muito daquilo, não era muito minha praia sabe? Ia mais por ela, mas me intrigava como ela pensava diferente de todos nós. Ela tinha esse amor pela Arte que a fazia pensar daquele jeito. Eu a questionava – Pra que serve isso? “Por que tem que servir para alguma coisa pai?” Talvez seja este o objetivo, a Arte, nos faz pensar diferente, faz sim. É uma lógica invertida.
E foi assim que começou, depois que ela se foi, passei a me interessar pelas Artes na esperança de que as obras tivessem a capacidade de trazê-la, pelo menos uma parte dela, de volta para mim. E fui entrando, quase sem querer. Mudei. Mudei porque a Arte sempre foi e sempre será o maior agente de transformação do Homem. Não sei explicar bem o que mudou, mas muita coisa ficou diferente. Certos conceitos dos business tornaram-se fúteis. Há muita babaquice no que eles falam. Sempre estive completamente imerso neste mundo, mas é como se eu estivesse me afogando numa piscina de plástico, daquelas que as pessoas põem no pátio no final de semana. É um mundo raso, superficial, onde as pessoas realizam seus objetivos e depois descobrem que aquilo não serviu para nada. Caem em depressão e viram alcoólatras. Quem pode querer isto? Antes de saber a verdade, muitos, muitos meu filho.  
O tempo está escoando, me sinto fraco. Meu legado é o que me perturba agora. O que deste mero mortal, ficará depois que eu partir. Trabalhei minha vida inteira na nossa empresa, mas e aí? O que vai ficar? Talvez nem mesmo a companhia resista. Você entende? Ninguém conseguirá apagar o nome de Hemingway da história. Ele ganhou o Nobel, sempre quando falarem de escritores terão que lembrá-lo. Se ele foi feliz? pouco importa. No final ninguém mais lembra se você foi feliz, se você amou de verdade, o que fica é a sua obra. Não sei se ele era feliz acho que não, se suicidou. Há tantos outros também que nem sequer ganharam prêmios, que nem mesmo venderam um quadro se quer em vida, mas que jamais serão esquecidos.
E foi uma dessas idéias de lógica invertida que me colocou nesta emboscada. Já estava tudo decidido. Meu filho é que ficaria com a sucessão. Ele estudou fora, tem boa experiência. Mas ela começou a falar de uma coisa que nunca havia sido ventilada na família. Me alcança minha bengala. Preciso me levantar um pouco. Minhas pernas doem. Cuide dos seus joelhos viu? Bom, mas então, ela me veio com esta “Por que não contratamos administradores profissionais? Assim, cada um terá dinheiro suficiente para fazer o que bem entende.”
Administradores profissionais... Não sei de onde ela tirou isto. Mas foi uma sacada boa, tenho que admitir que foi. O problema era que o Jorge, não apenas repudiou a ideia, ficou enfurecido com ela. O Jorge havia dedicado sua vida àquilo. O comando da empresa era o seu maior sonho. Mas era a opinião dela, valia tanto quanto às outras, nós tínhamos que ouvi-la, não tinha jeito. Daí meu filho, o clima na família ficou insuportável. Eles não se falavam mais, pior que isso, só falavam mal um do outro, e eu no meio daquele tiroteio tendo que ser imparcial. A solução foi deixar a questão de lado. Mas depois de um tempo ela voltou a tocar no assunto. Ela estava tão persuadida daquela ideia... Ela tinha aquelas certezas que se instalam dentro de nós e que não sabemos explicar de onde vieram. São convicções profundas, na maior parte das vezes irracionais, mas os homens de negócios costumam ignorar este tipo de “certeza”. Costumavam pelo menos. Hoje tem bastante gente que defende as inexplicáveis intuições na tomada de decisões. Antigamente, a gente contratava pesquisas, consultores, analistas e no final o que pesava mais era o racional, nem sempre dava certo, mas fazer o que, os negócios são, ou pelo menos eram, uma ciência exata. Ela tinha essa vantagem, ela não era do métier. Era livre, podia pensar sem pressão, sentia o mundo sem preconceitos. Jamais teria dito aquilo para prejudicar seu  irmão, foi o que ela sentiu ou intuiu, não sei.
Eles estavam bem próximos quando ela morreu. Meu coração dói quando penso nisto. O Jorge foi um grande homem. Ele superou as diferenças em prol da boa convivência e voltou a se aproximar dela. Pouco a pouco, passo a passo, convidou-a para um churrasco que ele mesmo preparou na casa dele. Ele sabe mesmo assar uma carne. Ela ficou muito feliz quando recebeu o convite. Eles já não se falavam há um bom tempo. Ela me disse, com uma voz que vibrava esperança “Papai você acredita que o Jorge me chamou para almoçar na casa dele? Pensei que isto nunca mais fosse acontecer. Vou levar um dos seus vinhos, tá bom? Você não quer ir junto?” Preferi me ausentar, é muito melhor quando as coisas se ajeitam sozinhas. As melancias se acertam apenas com o movimento do caminhão, vão se sobrepondo até ocupar os espaços da carroça de forma que quem vê de fora pensa que foram sendo encaixadas deliberadamente. E eles se acertaram... No dia do acidente, estavam juntos. Marcaram outros jantares e até falaram da sucessão. Estavam indo ao teatro naquele dia, lembro até mesmo da peça, era uma encenação de Os Borgias, daquele escritor do Poderoso Chefão, o Mario Puzo.
Depois da tragédia, eu tive bastante dificuldade de ir para a firma. A dor paralisa. E a morte traz a pior de todas as dores. Uma dor contra a qual não há argumento. Você sabe o quanto eu gosto de trabalhar, me sinto bem vendo as coisas andando como meu pai me ensinou. Entretanto, eu ia para empresa e não conseguia produzir. Jorge também ficou bastante abalado. Quando comentávamos dela ele sentia enjôos horripilantes e ia para casa. Voltava noutro dia, ainda com dor de cabeça e com cara de quem não dormiu direito. Ele tinha os sintomas do Raskólnikov, do Crime e Castigo, sabe? Eu às vezes me questionava porque só o air bag dele abriu, mas enfim, besteiras que a gente pensa nessas horas., parece que sempre tem que ter um culpado para as coisas ruins que aocntecem conosco. Passei a evitar o assunto para ele não se sentir mal.
Ela é que continua aqui, martelando suas idéias no meu coração. Os americanos vêm justamente para defender a posição dela e profissionalizar tudo. Eles querem uma parte boa da companhia, mas ainda assim talvez valesse a pena.

-       Boa tarde Sr. Almeida.
-       Boa tarde John.
-       Tudo bem com você? E os negócios?
-       Apesar do momento difícil, tudo bem.
-       Sei como é. A família deve ter conversado bastante nestes últimos dias. Vocês falaram com o consultor que indicamos?
-       Não, não falamos. Aqui, ainda fazemos as coisas da maneira antiga.
-       Que bom. Espero que tenham chegado a melhor decisão.
-       Talvez!
-       Você teve bastante tempo para analisar nossa proposta e já deve ter uma resposta.
-       O tempo não foi suficiente. Preciso de mais um mês.
-       Infelizmente Sr. Almeida, vocês não são a única empresa com a qual estamos negociando. Viemos de fora para fechar ou não o negócio. Estamos aqui para fazer a melhor parceria com vocês, mas não podemos mais esperar.
Eu que não posso esperar. A vida não me aguarda mais.
-       Eu entendo a pressa de vocês. No entanto, não tomarei decisão sob pressão.
-       Caro Almeida, em que mundo você vive? Não há pressões todos os dias na sua empresa?
-       Estamos falando de uma decisão complexa que envolve não apenas a empresa mas toda a minha família.
-       Devemos separar sempre os negócios das emoções.
-       Sei o que devo fazer. Preciso de um tempo. Volto a ligar para vocês, e se não der mais tempo, paciência.
Preciso de um copo d’água. Minha mão está tremendo. Não sei se vou suportar as consequências dessa decisão, mas preciso tomá-la. O que vai sobrar? O que meu pai levantou precisa ficar de pé. Se ao menos ela estivesse aqui para conversarmos... Sim foi proposital, eu sei sempre soube foi ele sim. Mas também ele é minha melhor opção para a perpetuação. A pior para minha consciência. Mas e se tudo acabar?
-       Jorge venha cá?
-       Sim, meu pai.
-       Você fez né?
-       O que?
-       Sei, que sim. Você ficará com a empresa.



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