A RAINHA NORUEGUESA

Esta reportagem que saiu no site da Revista O2 me encantou, resolvi publicá-la na integra. A história por si só já valeria, mas além disto há maratona, Nova York, auto-superação e a ascenção do poder das mulheres. 


Pioneira nas maratonas, Grete Waitz venceu nove vezes a de Nova York; nenhum outro corredor, homem ou mulher, conseguiu tal feito

Por Nanna Pretto

Ainda criança, a norueguesa Grete Waitz já competia nas corridas. Em família. O incentivo para a prática de esportes, no entanto, não era para ela e sim para os irmãos, o que a deixava, a contragosto, de fora das pistas. Grete era jovem demais para entender a discriminação que prevalecia no esporte. Hoje ela é o símbolo da revolução das atletas na Noruega.

Grete cresceu em Oslo, no dia 1° de outubro de 1953. Os primeiros prêmios vieram na adolescência, em campeonatos juniores nos 400 m e 800 m. Em 1970, aos 17 anos, ela cravou o recorde europeu na categoria, correndo 1.500 m em 4min17s. Desde então, a família passou a incentivá-la. Inclusive os dois irmãos mais velhos.

“Deus me deu um dom que eu aprendi a usar desde criança”, diz Grete em depoimento publicado no livro “Primeiras Maratonas”, de Gail Kislevitz. Apesar de ter praticado ginástica, handebol e outros esportes, durante a adolescência, o foco era mesmo na corrida. Os irmãos serviram de exemplo e como eles estavam sempre competindo entre si a esperta menina tratou de observar as técnicas de treinamento que apenas os garotos recebiam. “Outras garotas achavam difícil me vencer.”



Essa provavelmente foi a razão que levou Grete aos Jogos Olímpicos em 1972, aos 18 anos, em Munique. “Eu não esperava quebrar recordes, apenas estar ali apreciando e adquirindo experiência. E eu me diverti muito. Ganhei roupas e ninguém me pressionava. Era como estar em um sítio com minhas melhores amigas”, contou a atleta anos depois.

Era a primeira vez que as mulheres tinham permissão para competir nos 1.500 m nas Olimpíadas. Grete recebeu incentivo de colegas noruegueses em Munique e, na volta, continuou a treinar seriamente. Para garantir seu sustento ela não abriu mão do trabalho como professora e treinava, duas vezes por dia, correndo 75 milhas (120 km) por semana.

Em 1973, a norueguesa bateu os 3.000 m em 8min46s06, quebrando mais um recorde. Novamente, era a primeira vez que mulheres competiam nessa modalidade. Ao fim de 1975, Grete foi classificada como a atleta número um do mundo nos 1.500 m e 3.000 m. Sua presença nas competições –e nos pódios– fazia dela uma importante referência no movimento feminino que tentava conquistar a igualdade dos sexos nas competições esportivas.

Aposentadoria adiada
Em 1978, os planos da atleta eram fazer da maratona de Nova York a corrida de encerramento de uma carreira de dez anos. Além disso, Grete queria passear alguns dias pelo continente americano com o marido, Jack. Assim, conta ela em livro, entrou em contato com a associação de corredores de rua de Nova York para pleitear uma vaga na maratona daquele ano.

Sem nunca ter corrido 42 km e ter excelentes marcas apenas em curtas distâncias, a tentativa foi, inicialmente, em vão. Ela foi recusada.

“Após todos aqueles anos dando aulas o dia inteiro, treinando duas vezes por dia e competindo quase todo fim de semana, eu estava cansada. A maratona de Nova York seria a minha última prova. Mas eu já não tinha esperança que isso acontecesse depois que negaram meu pedido”, admite a atleta, no livro “Primeiras Maratonas”.

Nessa época, Fred Lebow, um dos fundadores da Maratona de Nova York, a convidou para competir nos Estados Unidos. Estava dada a largada para a carreira –e os nove títulos– da loira de rabo de cavalo na famosa prova nova-iorquina.

“Ele conhecia meus recordes, sabia que eu era rápida e perguntou se eu gostaria de participar da prova”. Lebow não esperava que Grete completasse a prova, mas precisava de um “coelho” (alguém que corre forte e puxa os atletas de elite). Como a atleta já havia demonstrado interesse pela prova, ele teria chance de ela topar.

“Para mim foi como uma segunda lua-de-mel. Eu não pensava na maratona, não tinha ideia de como me preparar para uma. Pensava que a minha maior distância, de 12 milhas (19,2 km), seria suficiente para eu chegar à linha de chegada”, conta Grete.

No dia da prova, com mais 13 mil corredores, Grete se posicionou na largada, olhou em volta e não reconheceu ninguém. Ela estava rápida e conseguiu manter o ritmo por um bom pedaço. “Eu fazia uma boa viagem e, de fato, consegui melhorar minha velocidade. Estava bem confortável e, acima de tudo, aquilo era uma corrida!”

A alegria durou até a 19a milha (30,5 km). O corpo chegava a um limiar desconhecido, e Grete nunca havia corrido tão rápido. Não conseguir converter as milhas em quilômetros, unidade de medida a que estava acostumada, a incomodava. Sem saber falar inglês, Grete sentia vergonha de perguntar a distância a alguém. Para as câimbras nos quadríceps o melhor era beber água, pensou. “Mas eu nunca havia experimentado beber água naquela velocidade e acabei completamente molhada. Essa é uma prática que, sem dúvida, deve ser adquirida em treinos.”

Grete continuava a correr forte, sem a menor ideia de onde ela estava e do quanto faltava para o fim da prova. “Qualquer aglomerado de árvores eu já pensava ‘ufa, cheguei no Central Park’. E não era.” Para manter-se motivada ela xingava o marido por incentivá-la a fazer tal loucura. As laranjas oferecidas no percurso substituíram a tentativa frustrada de hidratar-se com água. Aquele era, definitivamente, o percurso mais difícil que Grete havia corrido, e ela não tinha noção de como estava conseguindo.

Finalmente, exausta e dolorida, Grete cruzou e linha de chegada. Imediatamente ela foi surpreendida pelos repórteres e cinegrafistas que empurravam microfones e câmeras em sua direção. “Eu não entendia o que eles estavam falando e eu só queria correr deles. Tudo que eu queria, naquele momento, era achar Jack e ir para casa. Eu não gostei daquela corrida”, afirma a atleta, que naquele momento nem fazia ideia de que acabara de cravar o novo recorde mundial: 2h32min29s8.

O resto, segundo Grete, é história. “Eu não tinha ideia de que eu tinha quebrado o recorde. Me inscrevi tão em cima da hora que o meu número de peito, 1.173, não constava na listagem da prova. Ninguém sabia quem era a loira de rabo de cavalo. Tornar-se repentinamente uma heroína era difícil de entender. Eu era uma corredora e esse era o meu trabalho. Eu fiquei inconformada com todo o alvoroço que os americanos fizeram com a minha vitória.”

Inconformada ou não, Grete voltou à Nova York mais oito vezes e venceu em todas as provas, estabelecendo uma incrível marca de conquistas, que até hoje não foi superada. Para completar, ela ainda quebrou recordes em 1979 e 1980. Não é à toa que a atleta detém o título de padroeira da Maratona de Nova York.

De 15 maratonas disputadas, Grete venceu 13 e registrou quatro recordes mundiais, três em Nova York e um na Maratona Internacional de Londres, com o tempo de 2h25min28s. A atleta ainda conta com cinco títulos mundiais na modalidade de cross-country.

Selo e estátua
Em 1980, Grete tornou-se símbolo do movimento esportivo e da revolução feminina na Noruega. Uma vez ao ano, as ruas de Oslo são tomadas por cerca de 50 mil mulheres para participar da corrida “Grete Waitz”. Tão famosa quanto a competição, é a estátua localizada fora do estádio Bislett, em Oslo. Um selo comemorativo com a imagem da atleta também foi confeccionado em sua homenagem.

O adeus às pistas
O desejo de se aposentar, anunciado em 1978, teria, de fato, acontecido naquele ano se não fosse o telefonema de Lebow. Em 1990, no entanto, a atleta deixou oficialmente as pistas para iniciar uma nova carreira, dessa vez como porta-voz das mulheres esportistas. “Há muita informação que precisa ser passada da forma correta”, comenta Grete no livro “Primeiras Maratonas”, referindo-se ao problema de amenorréia que teve.

“Por volta dos 23 anos de idade minha menstruação parou. Ao procurar um médico ele disse de forma tranquila: `não se preocupe, ela voltará´. Agora eu sei que tive uma doença chamada amenorréia e que ela tem sérias consequências. Existem muitas outras coisas que afetam o corpo e a mente da mulher esportista e que ainda estamos aprendendo.”

Em abril de 2005, aos 51 anos, a maratonista foi diagnosticada com câncer. Na época, amigos e parentes fizeram o possível para manter a notícia longe da imprensa. Antes da Maratona de Nova York do ano passado, ela deu uma entrevista coletiva.

Grete descobriu que tinha câncer após sentir uma “rara” preguiça ao terminar uma prova. A sensação a fez procurar um médico e confirmar o diagnóstico. “Em um dia você está rindo e feliz e, no outro, chorando, em choque. Eu nunca tinha sido hospitalizada. Não tinha um resfriado havia anos”, desabafou a atleta.

Enquanto lutava pela cura, Grete se inspirou no amigo Fred Lebow, que morreu em 1994, também vítima de câncer. Hoje ela diz entender o que levou Lebow a correr os 42 km de Nova York, em 1992, já doente –naquele ano, ela o acompanhou durante o percurso. “O que Lebow fez foi uma inspiração para mim. Talvez eu não consiga completar novamente uma prova. Mas todo mundo deve estabelecer objetivos na vida.”

A história e o apoio do ciclista heptacampeão do Tour de France, Lance Armstrong, que superou um câncer, também ajudam Grete nos piores momentos da doença. “Por ser uma atleta, você é uma lutadora e, assim como eu, vai vencer essa porcaria de doença”, disse o ciclista à Grete, por e-mail.

“Eu concordo. O exercício nos deixa forte fisicamente e mentalmente. E é isso que me fez lutar e não deixar que o câncer me vença”.

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