A FUGA
Cantam os pássaros. São 6 da manhã na cidade que se diferencia das vizinhas apenas pelo nome. Quase todos por aqui, possuem algum grau de parentesco e acordam junto com o sol que parece nascer da própria terra, esfera flutuante de cor indescritível. Neste lugar o bucólico impera, os silêncios falam mais que as vontades e o outro quase sempre importa mais que o si. Apesar de tudo, a vida havia sido generosa com Natália. Sua existência sempre tivera um que de sutileza, leveza e beleza. No entanto, a vida chegara para cobrar seu preço, esmurrando a porta, feito um soldado que volta para casa e desconta angústias, cobrando dos descendentes algo que eles não podem dar.
João sai para ver a horta. A esta hora, sua esposa já estaria chegando com o leite recém tirado, depois faria o café e limparia a varanda. Desde que ela se foi, não sentem mais o perfume que a manteiga exala quando toca o pão quente. A casa perdeu o cuidado que só uma mulher pode dar. O cotidiano massacra por dentro, torna concreta sua ausência, faz João pensar que tudo poderia ter sido diferente.
7 da manhã, os dois na sala;
João, sem saber muito bem como dizer, anda de um lado para o outro, acredita estar fazendo o melhor para a filha, mas não tem certeza.
- Filha, não é fácil para mim, tomar esta decisão. -Titubeia, a voz sai tremida, não pelo medo do futuro, falta convicção.
- Sei pai. -Responde a menina evitando o olhar, ansiedade penetrando aos poucos seu coração.
- Na vida enfrentamos períodos que são como tempestades. Embora difíceis, quando terminam, os campos ficam perfumados e as pessoas mais felizes. Você conseguirá trabalhar para ganhar o suficiente para a gente viver. Mês que vem também vou atrás de algo para fazer. Se der certo, poderá voltar. Você sabe, alguém tem que cuidar da casa agora que ela não está mais aqui. Foi tudo o que nos restou. – Fala sem coerência com o que sente. Aparenta segurança, mas por dentro está cindido.
- Sim pai. Tomara que você consiga. -Natália fala rápido.
- Seu ônibus parte às 5 da tarde, mas às 4 você tem que estar aqui para não se atrasar. - Quer manter Natália aprisionada a sua vontade, sem escapar, mesmo longe.
- Minhas malas já estão prontas. - Arrumara lentamente a mala na tarde anterior, aproveitando a ausência do pai, queria sofrer ou pelo menos estender ao máximo sua despedida.
Esfrega os olhos como de costume. Pede permissão ao pai e sai fechando a porta devagar. Esfrega mais, como se pudesse fugir da realidade que a seguia feito sombra, algo que ela entrevia, mas não podia tocar. Já não é mais a menina que brincava descalça no barranco perto de casa, cavando a terra que apóia as pedras da elevação. Deliciava-se quando as rochas despencavam, produzindo junto com o receio de que a machucassem um prazer por conseguir destruir o que estava estabelecido. Lembra do pai chegando da colheita, e antes de ir ver sua mãe, vinha cuidar da mais importante semente que havia fecundado. Exalava suor, cheiro de homem que produzia estranhas sensações nas suas entranhas. Recordava mais, seu corpo de menina sujo de barro, sempre. Um barro rosado, impregnado nas pernas, unhas. Mostrava ao pai as minhocas que juntara no balde. Dizia para jogá-las fora depois da brincadeira, são importantes para terra. Filha.
8 da manhã, em direção ao córrego;
Seu caminhar agora é duro, seus passos largos, acelerados. Tenta antecipar o tempo, fazer da vida algo que se interrompe, mas não. A vida lhe parece uma pedra que despenca num barranco sem fim e a qual ela demorou tanto para cavar. Só que neste despencar não há satisfação, somente o medo de possíveis feridas no íntimo.
O barro vai grudando em suas botas de plástico, deixando o andar mais pesado. Olha coisas simples, busca alguma distração. Sua atenção detém-se no formato de um galho. Algo que jamais reparara. Apesar da aflição, as cores parecem mais vivas e os detalhes mais salientes. Será que todo o condenado distrai-se e vê as cores mais vivas antes de sentar na cadeira elétrica? Contorna o açude e aproxima-se do córrego. Ali tantas vezes banhou-se. Vê os peixes e tem vontade de misturar-se com a água, mas não pode voltar molhada para casa. O que diria seu pai ao vê-la banhada, num dia onde há tanto o que fazer.
10 da manhã, João em casa;
Cansado. Morde a falange do dedo indicador. Conseguirá suportar a ausência das duas mulheres, seus dois amores, se somente uma já foi o suficiente para levar seu sofrimento ao limite? Desce no porão para buscar um machado. A penumbra cansa sua vista, suas pernas tremem, sua respiração é forte. Tem vontade de deitar ali e ficar, no frio, sozinho e como uma fêmea grávida, apenas esperar para que a vida apareça de novo. Não pode, precisa agir, como um macho. Sai em direção a madeireira.
11 da manhã, na beira do rio;
O desejo vence a repressão. Nua, entra no rio. A água fria gela o corpo. Aos poucos vai se acostumando e a sensação transforma-se em frescor. Passa as mãos nos braços, arrepia-se. Enquanto o sol aquece, as pedras das margens trazem a dureza do momento que enfrenta.
12 horas, sol a pino;
João sente a garganta seca e o enjôo que sobe por ela. Escolhe os troncos mais grossos. Golpeia-os com violência. O machado sacode assim que parte o tronco, o tremer penetra seu corpo e vibra seus sentimentos. Então, pega um galho maior. Bate com mais intensidade. Acredita que assim a sensação terá que, de alguma forma, sair de dentro do seu peito. Sua camiseta começa a umedecer e exalar o cheiro que Natália aprecia e que ele não sabe.
13 horas, córrego triste
Natália senta-se em uma pedra. Está melancólica. “Não quero sair daqui. Eu amo este lugar. Posso fugir. O que vou comer? Dou um jeito, peço ao vizinho, sei lá. Como será viver na cidade? Não gostei quando fui, talvez goste agora. Foi aqui mesmo que voei de olhos fechados. Não lembrava que tinha sido aqui, nesta parte do rio. As árvores de cima, os detalhes desaparecendo, a paisagem se unindo, tudo é uma coisa só lá de cima. Quando contei à papai ele nem me olhou. Ficava mexendo uns papéis. Coisas de adultos. E se eu voasse de novo? Tão bom... Poderia ir e não voltar para pegar o ônibus.”
Tenta voar para que o medo saia, mas de fato, o que sai é uma lágrima que cruza seu rosto e corta profundamente sua alma.
14 horas, galhos cortados
“Mais esse tronco e eu paro. Vou dar bem no meio para partir rápido. Minhas mãos já estão doendo. Dói muito isto. Arde. Arde por dentro, não sei. Aquela puta da minha mulher. Tomara que ela esteja sofrendo mais que eu. Tomara que esteja na mão de um filho da mãe que judie dela. Seria tão bom se ela estivesse aqui. Sem ela, também perco a Natália. Nós três, tão bom nós três. Por que estraguei tudo? A culpa é da Natália. Além do que fez, ainda me lembra a mãe. Aí minha mão. Dói muito. Mas é bom que esqueço delas. Vou bater com mais força. Dói muito parece que estou segurando uma brasa. Não agüento mais, mas é bom.”
16 horas, fuga I
“Já devo estar atrasada. Meu pai irá me matar se eu chegar tarde. Ele já deve estar em casa me esperando furioso. Não quero ir. Quero ficar. E o ônibus? Será que tem banheiro. Quanto tempo demora para chegar até a cidade? Ah a água. Meu corpo está quente. A água fria. Aquela sensação boa está de novo nas minhas pernas. Agora não posso, preciso sair daqui. Ai, como é bom. A água está me tocando mais forte. A corrente da água me toca, passa. Com as pernas mais abertas é melhor. E se vier um peixe? Não posso. Preciso sair. Os peixes me tocam. Estão em mim. Minha mão pode tocar também. É como o peixe. Está saindo. Como um alivio. Uma coisa que se põe para fora. Me sinto mais molhada, por dentro, por fora. Mais forte, melhor. Aí. O que é isso? Bom. Eu quero ficar aqui. Estou melhor...”
17 horas, fuga II
“Natália deve estar no ônibus. E se não voltou? Não sei. Não quero vê-la também. Irá doer. Mais que a mão até. Quanta lenha eu cortei. Não precisaremos mais nos preocupar com o inverno. Minha mão está ardendo, mas esta dor é boa, me tira daqui. Me faz esquecê-las. Eu acho que se doer mais eu terei menos sofrimento. Será que está tudo bem com Natália? Vai dar tudo certo. Ela vai gostar mais da cidade do que daqui. Aqui é chato, não tem nada para fazer. É sempre igual. Não sei! Mas ela gosta tanto das coisas daqui. Pobre filhinha. Coitada. Está doendo, forte. Não posso sentir mais isto. É por dentro. Acho que vou vomitar. Vomitar não vai adiantar. Talvez as mãos. Mais dor. Será que essa lâmina me tira disto. Vou passar de leve na pele. Preciso melhorar. Mais fundo. Nossa sangue. Quanto sangue. Não posso. Está passando, mas não posso. Aí. Natália me ajude...”
O sol se pôs, os pássaros calaram-se. As pedras param de cair do barranco e deram espaço apenas ao deleite.
Muito bom! Adoro esse teu jeito de escrever, com detalhes enriquecedores e envolventes mas de maneira direta, sucinta. Gosto das perguntas durante o texto e das analogias. Excelente história. Parabéns!
ResponderExcluirDéa