O MAR, AMOR



Daqui a pouco alguém vai gritar “Terra a vista”. E aí, eu vou enjoar, mais do que quando o mar fica agitado. Não é qualquer Terra a vista que me dá essa náusea, é essa parte da Terra. Não, não é a Terra; é Ela.
E se eu não descesse? Afinal, será só uma noite e, se eu não a vir, daqui a uma semana nem lembrarei mais que passamos por aqui. Uma vez o marujo me disse “Aqui há tudo meu filho, toda forma de vida nasceu do mar.” Aquele velho é que sabia das coisas. Eu não preciso dela, por que quem tem o mar tem tudo. Por sorte, nasci dele, aprendi seus truques na praia e o pessoal da Marinha gostou disto me pegou. Também aprendi muita coisa lá. Hoje a fonte da vida está sob os meus pés. Não careço de mais nada. Longe da Terra sou livre, trabalho com o que gosto, estou ao lado dos meus amigos e me sinto próximo do marujo que me ensinou tudo. O Mar me une à minha essência. Mas algo me falta, não sei bem o que é, talvez... Ela. 

- Meu barco vai passar esta noite aqui no porto. “Por que você não me avisou que viria?” Eu não tenho como fazer isto. Você sabe. “Quem quer sempre dá um jeito.”
Como é bom ouvir a voz das sereias. As vezes, lá no meio do oceano, elas cantam para mim aquelas músicas de anjo que se ouve na igreja. Mas, Ela é diferente de todas, é como o Mar na ressaca. Ao mesmo tempo que dá medo, me deixa mais vivo. Quando Ela está por perto, tudo fica tão excitante! Até a cor do céu fica mais clara...
- “Não posso. Marquei de sair com um amigo.” Eu só quero dormir com você hoje. Seu amigo está aqui todo dia. “Você me desanima. De que adianta sair com você hoje se amanhã já estará longe?”
O marujo também me ensinou que quando o vento sopra forte e nos tira do rumo é preciso virar o leme, se não, vamos para a direção errada.
- Mesmo depois dos três meses que passamos juntos você não me conhece? Não sabe que por mais longe que eu esteja meu coração fica aqui com a mais sincera esperança de um dia permanecer? “Para minha sorte, você não é o único marinheiro que eu conheço. Sei como vocês são. Vocês não valem nada.”
A língua macia está entrando na minha boca. Talvez seja isto que chamam de felicidade. Me sinto maior do que sou. A sensação vai além do meu corpo. Lembro dos meus amigos do mar. Eu queria que eles também sentissem isto e que estivessem comigo agora. Quantos deles jamais tiveram esta sensação? Talvez se eu me inclinar tenha um pouco mais dela. Ela geme enquanto beija, havia me esquecido disto. Que tesão, quero senti-la ainda mais. Ela abre os olhos e seu olhar brilha como um farol. Preciso desviar. Se olhá-la demais talvez não consiga mais enxergar. É só de longe que o farol ajuda. Se a luz fica muito perto do marinheiro ele cega e bate contra as pedras.
Ela gosta quando eu seguro forte, mas vou acariciá-la também. Carinho é coisa de quem gosta muito, talvez de quem ame. Não, não preciso disto. Estes sentimentos estão confundindo o meu espírito. Estou preso, mas, engraçado! Me sinto bem! Maravilhosamente bem. É como se eu estivesse aprisionado numa ilha deserta, tendo tudo o que quero e ainda a pessoa que amo ao meu lado. Pessoa que amo? Eu nunca disse isto antes. Serei eu? É este olhar que não me deixa mais ver as coisas direito. Me sinto mais dela do que de mim. No Mar não há isto.
- Sereia vamos comigo para o Mar? “Você só pode estar louco. Eu não suportaria nenhum dia aquela rotina chata que vocês levam.” Mas lá é tão bom! “Fazer sempre a mesma coisa é bom? Desde quando? Quem consegue ser feliz vivendo um dia igual ao outro?” A rotina é uma coisa maravilhosa, é ela que nos ensina a fazer as coisas mais simples do barco de forma cada vez melhor. “Esquece, não existe a possibilidade de eu ir com você.”
Que saudade da tranqüilidade do Mar. Aqui tudo é confuso, turbulento como uma ressaca. Parece que as enormes ondas que enfrento no Alto Mar agora penetraram na minha barriga e estão quebrando no meu coração. Quando o Mar cresce, nenhum marinheiro dorme. Pelo menos aqui, na Terra, posso fugir.
Amanheceu, ainda bem! Logo mais estarei no barco. Ela está nua. Agora entendo aquele pintor que conheci no Nordeste e que passava os dias procurando meninas para pousar nuas. Ele me disse que não queria transar com elas, desejava apenas imortalizá-las nas telas. Vou aproveitar que ela está dormindo para ir embora. Se ela acordar vai me convencer a ficar. Um beijo bem de leve no rosto e me vou. Que pele macia... Ela quer que eu fique, mas não posso. Ela me prenderia, me limitaria e eu não seria mais quem sou. Não posso enredar-me em algo essencialmente diferente de mim. Sou livre. Meu espírito é livre.
Lembrei daquela vez que mergulhei no Mar para nadar e meus amigos fizeram a brincadeira sem graça de ligar o motor e ir para longe. Havia ondas e em pouco tempo eu não conseguia mais vê-los. No começo, me apavorei e tentei lutar contra a situação. Daí percebi que não podia fazer nada, virei de barriga para cima e comecei a boiar. O pavor foi passando e eu comecei a me sentir muito leve, mas não era uma leveza física, eu lembro bem, era uma leveza na minha alma. Eu estava onde eu queria estar. A água era toda minha e eu era todo dela, era a companhia perfeita. Tive uma sensação de que se por qualquer motivo eles não conseguissem mais me achar ou se um tubarão me devorasse eu morreria feliz. Eu estava onde eu queria e tinha feito tudo o que quisera na vida era como se a missão estivesse cumprida.
Mas Ela me apavora mais que a solidão no Alto Mar. Se eu não tivesse vindo aqui, não estaria sofrendo deste jeito. Meu corpo quer ficar. Meu espírito quer o Mar. Vou acabar rachando. Isto dói.
Meus pés tocam a areia. Sinto-me aliviado por ter conseguido sair de lá. A lua cheia brilha esplendorosamente acima do horizonte. Ela possui vida própria, levita porque assim deseja, e ilumina o caminho dos homens do mar. Na terra as pessoas tem luz própria. Eu nunca havia reparado na beleza do conjunto deste monte de luzinhas da cidade. São muitas. E de tantas cores.
E se eu ficasse?
Será que conseguiria viver os dias agitados de uma cidade? Eu não me sentia bem aqui antes de entrar na Marinha. Serei feliz mesmo sendo Ela e não EU?
Acho que sim, pois como se diz o amor liberta e traz paz para o coração.
Entretanto, a liberdade, até mesmo das partículas, está na água. Somente lá se pode viver em paz.
Mas aqui nunca mais terei que passar por aqueles dias intermináveis em que o tédio visita o barco.
De uma coisa eu tenho certeza. Não conseguirei ser feliz sem ver a espuma das ondas.
Estar na Terra não me impede de ter o mar. Estar no mar me impede de tê-la. Não é mais uma questão de OU e sim de E. Vou voltar para a cama, me deitar de barriga para cima e ao lado Dela... Boiar...

Comentários

  1. Que lindo desfecho!!
    Bjo Vivi Müller

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  2. Que lindo Dan. É realmente emocionante, e o texto está muito gostoso de ler!!!

    Beijnhos.

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