VENDETTA


De mãos dadas, sobem a Boulevard St. Michel em direção ao Jardin du Luxembourg. Paris brilha! É um daqueles dias perfeitos para deitar na grama, tomar sol dourado e sorvete rosado. O Mc Donald’s da rua contrasta com a arquitetura Haussmanniana. Está tão deslocado quanto a moderna pirâmide de vidro que jamais sentiu-se à vontade na frente do Louvre. Preferem o Pompidou. Afinal de contas, os contrastes sempre fizeram parte das suas rotinas e retinas. Não estranhariam nem mesmo se o Ronald, ao invés de vermelho e amarelo aparecesse pintado de bleu, blanc et rouge.

Marie sorri e olha para cima, Mathieu admira seus lábios. A brisa tira-lhe a franja do rosto. Pensou que jamais conseguiria admira - lá depois da fervorosa discussão que tiveram semana passada. É a montanha-russa do amor. Onde, quando a emoção ameaça desaparecer, surge o loop de 360o para dá-la mais intensidade.

- Trouxe o pano para colocarmos na grama?

- Não!

- Onde iremos deitar então?

- No chão, ora.

- Mas vamos nos sujar.

- Quem deveria se importar com isto sou eu, que sou mulher.

O carrinho que vende os sanduíches de gorgonzola que ela tanto gosta se apóia nos portões do parque. Um simpático indiano de sotaque engraçado, atende as crianças que aos gritos lhe imploram por Coca-Cola.

Mathieu procura a parte mais limpa do gramado. Sentam-se. Ela quer tocá-lo, mas ele não sabe. Teme que ela não sinta mais nada.

- Te amo Mathieu

- Que bom ouvir isto, cherrie. Espero que nosso amor supere tudo e que sejamos inacreditavelmente felizes.

Ele aguarda a tréplica. Não vem. Se pelo menos ela sorrisse... Vive naqueles instantes o temor dos amantes - de um dia não ter mais seus carinhos retribuídos. A tarde está linda. Sabem o quanto os turistas invejam os parisienses. Queriam eles, ter parques formosos como aquele, onde nas tardes ensolaradas da primavera abandonariam seus corpos ao calor. Sem nenhuma preocupação, ali ficariam, até que desejassem sair para caminhar na mais bela cidade do mundo.

- Amor, conhece minha amiga Brigitte? – Pergunta Marie.

- Que mania você tem de dizer que pessoas com as quais você conversou duas vezes na vida são seus amigos – Sua confiança se restabelece. As quatro letras que ela usou para chamar sua atenção mudaram inteiramente a sensação do seu peito.

- Ela era minha vizinha, mas faz anos que não nos falamos. Está ali com seu namorado. Vamos lá?

- Agora não, linda. Está tão bom aqui. Vamos aproveitar mais os momentos que ficamos juntos.

Brigitte também vê Marie e abana. Ela retribui o aceno e sorri. Seus dentes são curtos e sua gengiva aparece quando ela está feliz. O espírito de Mathieu enleva-se quando isto acontece. Às vezes chama-a de mini-teeth, Marie se encanta em saber que alguém presta a atenção numa característica tão distinta. O casal detém-se no rapaz lânguido de olhar constrangido que está ao lado da “amiga”. Parece um pouco deslocado da paisagem. Crianças e vendedores ambulantes atravessam seus campos de visão.

- Quem consegue usar estes chaveiros da Torre Eiffel?

- Os amigos dos turistas – Mathieu solta uma gargalhada.

- Mas espetam a perna quando colocamos no bolso.

- Eles compram porque são baratos. Não dá para presentear todo mundo com quadros pintados em Montparnasse.

- É verdade, mas então que levem aquelas canecas da Sacre Couer. Pelo menos tem alguma utilidade.

A pele de Mathieu é mais clara que a dela, esquenta e cora facilmente. O namorado de Brigitte lhe dá a mão ajudando-a a se levantar. Os casais se aproximam. As meninas se abraçam e se beijam, os rapazes dão as mãos. Conversam brevemente e marcam um jantar. Próxima sexta-feira, perto da Place de la République, num restaurante tailandês que Brigitte adora.

A semana passa sem que Mathieu e Marie falem do compromisso. Do outro lado, expectativa. Leonard e Brigitte não têm muitos amigos. Falam neste assunto o tempo todo. A possibilidade de novos relacionamentos produz uma certa ansiedade no casal.

- Olá! Faz tempo que vocês chegaram? – Brigitte pergunta ajeitando sua bolsa na cadeira.

- Uns 15 minutos. Leonard não gosta de se atrasar.

- Que bom que vocês pegaram mesa. Tem uma fila enorme lá fora.

- Costumo marcar jantares com 30 dias de antecedência. Prefiro saber o que vou fazer nos próximos três meses.

- Não exagera Leonard!

- É verdade. Aprendi no exército. Planejo tudo.

- Que saco! Eu não conseguiria viver assim. Acho que me suicidaria. Às vezes eu e Mathieu viajamos sem planejar para onde vamos. Chegamos na estação e decidimos o destino na hora.

- Não me adapto muito a esses conceitos da contra-cultura.

- Então aposto que você poupa 15% do que ganha todo mês.

Todos riem.

A despeito de caminharem pela Rue de Lyon, o imponente leão representando a força da República fica para trás sem que nenhum dos quatro o perceba.

- É incoerente Paris ser chamada de Cidade Luz se as luzes dos bares apagam-se tão cedo. – Diz Leonard.

- A culpa é dos turistas inconseqüentes. Bêbados, acham que podem tudo. – Responde Mathieu

- Isto é problema da polícia. Ela é que deve prender os vândalos

- Prender não trará a beleza dos nossos monumentos de volta. Prejuízos assim são irreparáveis.

- Eu conheço uma balada próxima ao Ópera que certamente estará aberta – A dispersão mental de Brigitte interrompe o fluxo de uma possível profunda conversa.

Param alguns instantes em frente ao teatro. Parecem crianças maravilhando-se com o desconhecido. Construído em 1859, o Ópera Garnier é considerado uma das obras-primas da arquitetura de seu tempo, sua estrutura serviu de inspiração para o famoso Fantasma da Ópera e acolheu em seus palcos os maiores maestros e músicos da música erudita.

- Os americanos jamais conseguirão nos tirar o título de capital mundial da cultura. Tradição não se compra. – Mathieu é o mais orgulhoso dos franceses.

- Talvez Berlim, correndo por fora, silenciosa e vanguardeira possa tirar. Independentemente do que aconteça o mundo tem que ser eternamente grato a nós. Se não fosse pelo Ópera e pela efervescência cultural parisiense no início do século XIX ninguém conheceria por exemplo, Chopin e suas Polonesas. – Responde Leonard

- Vamos pessoal. Hoje a noite é eletrônica. A música erudita ficou no século passado.

- Não fale besteira – Respondem os rapazes em uníssono.

A entrada é estreita, depois de passarem pelo corredor a meia-luz, descem por uma escada preta para um ambiente ainda mais escuro. A fumaça irrita Mathieu. Já faz alguns anos que fumar em locais fechados foi proibido em Paris. No entanto, em ambientes undergrounds as pessoas o fazem sob a vista grossa dos seguranças.


A música é animada. Brigitte dança como se o som fizesse parte do seu corpo. Leonard não consegue acompanhá-la, então sai para buscar um drink. Marie o acompanha.

- Você também gosta de suco de tomate?

- Sim adoro. Mas Brigitte acha que tomar suco de tomate é como beber molho ao sugo.

- E o que você faz?

- Eu não me importo, continuo bebendo.

- Não bobo. Queria saber com o que você trabalha?

- Aaaaahh... Estou fazendo um curso de especialização em direito criminal na Sorbonne.

- Que legal. E o que você acha da justiça?

- Francesa? Muito lenta. Agora respondendo a pergunta num sentido mais amplo, acredito que a melhor justiça é a vida quem faz.

- Algo como ação e reação?

- Sim. Se todos fossem conscientes de que algumas atitudes prejudicam os demais, não precisaríamos de leis.

- A teoria é bonita. Parece-me com aqueles conceitos marxistas, lindos e utópicos.

- Mas precisaremos de leis por um tempo, até que sejamos mais responsáveis pelos nossos atos. Vamos voltar?

Brigitte e Mathieu dançam animados no meio da pista. A música faz seus corpos movimentarem-se de maneira espontânea, como se o som que sai das caixas tivesse interferência no seus livres-arbítrios. A sintonia os faz felizes. Marie não gosta muito do que vê. Mathieu não costuma simpatizar tão facilmente com suas amigas. Talvez haja algo a mais que a música motivando-o daquela maneira.

Marie interrompe sua animação para rudemente fazer uma pergunta sem importância. Ele reconhece aquele tom de voz. Responde o que ela queria saber, conversa mais um pouco e volta a dançar.

14 de julho é um dia de festa na França. O país se prepara durante três meses para esta data. Celebram as enormes transformações que o mundo sofreu quando há 220 anos os revoltados camponeses pegaram em armas e invadiram a Bastilha. A liberdade individual ganhou espaço, a igreja e a nobreza perderam força, e o mais importante é que todos os governantes passaram a respeitar mais o poder da sociedade. Alguns franceses pensam que este deveria ser um feriado mundial. Afinal, as conquistas da Revolução não foram percebidas apenas na terra de Napoleão, mas em todo o planeta.

Os casais encontram-se na Champs Élysée, em frente à Louis Vuitton. Vibram com os fogos de artifício que iluminam o céu. Soldados marcham em perfeita sincronia. É festa em Paris.

- Leonard vamos buscar um Häagen-Dazs?

- Claro. Brigitte quer que eu pegue um para você? Qual sabor você prefere?

- Chocolate. Você sabe.

A fila está enorme. Marie olha para os lados. Há muita gente na loja, alivia-se por não conhecer ninguém. Está nervosa. O desejo já está introjetado em suas entranhas. Falta apenas a coragem. A vontade cresce sem controle. E... ruidosamente explode como uma bomba de hidrogênio dentro dela.

- Leonard sabe porque escolhi sorvete de morango?

- Não.

- Porque morango é a fruta do desejo.

- É uma fruta bem sensual mesmo...

- Lembra a cor dos lábios. Quer experimentar?

- Quero.

Ao invés do sorvete ela lhe oferece os lábios. Ele aceita. Beija-a mordendo a melhor parte da fruta. Quer o morango. Receia que esteja fazendo algo errado. Lembra-se de Brigitte e ao mesmo tempo sente o calor da boca de Marie e quer beijá-la mais. Beija-a com tesão, com o ardor despudorado de uma vontade represada. As línguas molhadas se interpenetram. Somente eles ouvem os gemidos quase silenciosos. Ela abre os olhos para ver se Mathieu está por perto e fecha-os para desfrutar um pouco mais.

Na frente do seu namorado Marie consegue agir naturalmente. Já passara por aquilo antes e sabe que com as loucuras do amor, os parisienses são os mais bem resolvidos dos europeus. Leonard olha para baixo. Brigitte lhe chama. Ela prefere não tocar no assunto, mas sente que há algo estranho no ar.

Duas semana depois finalmente se encontram para terminar o que haviam começado.

- Que bom que você veio.

- O que você disse à Brigitte?

- Que iria fazer um trabalho da faculdade.

Leonard esperou tanto por aquilo que treme de ansiedade. A arapuca da novidade está armada. Produzindo no começo dos relacionamentos uma euforia viciante. Caso se sobressaia, fará os amantes deixarem para trás os antigos namorados com a frágil certeza que a monotonia nunca irá bater a porta do novo caso.

Pegam-se com força, do jeito que Marie mais gosta. Ela implora que ele a segure com vigor, como se agarrasse a caça da qual depende para nutrir seu corpo. Gemidos, grunhidos e fluidos. Mais prazer e, gozo...

O arrependimento invade a consciência de Leonard. Ele temia que isso fosse acontecer. Sente-se aflito, sabe que não fez o que deveria com sua namorada e com Mathieu. Apesar de conhecê-lo pouco, simpatizou com o rapaz. Deseja Marie, mas não consegue ficar ao lado dela. Precisa resolver o estorvo. Despede-se com um beijo seco e volta caminhando para casa.

- Olá Leonard. Está tudo bem?

- Brigitte meu amor. Preciso te falar uma coisa.

- Pode falar.

- Eu fiz algo que não devia.

- Conte. – aquela angústia de quando esperamos pelo pior toma conta de Brigitte.

- Eu transei com Marie

Uma lágrima escorre do seu olho, junto com ela, uma lâmpada de consciência brilha dentro do seu, agora, conturbado psiquismo. É como se uma voz de sabedoria comandasse a situação

- Leonard estou realmente chateada com você. Não esperava uma atitude dessas. No entanto, fico feliz que você tenha me contado.

- Brigitte é você que eu amo. Sensações são diferente de sentimentos.

- Será? Me deixe sozinha.

Leonard dai ter com Mathieu.

- Mathieu desde que te conheci simpatizei imediatamente com você.

- Eu também gosto de você Leonard.

- Ontem eu fiz algo indigno de um amigo.

- Como?

- Eu fiquei com a sua namorada.

A voz que iluminou Brigitte talvez fosse de um bar parisiense, já desligada a essa hora, pois não chegou nem perto do emocional de Mathieu.

- Você está louco! Seu filho da p...

- Ela me disse que isso já havia acontecido antes e que você não ligava.

- Sempre suspeitei de você. Você nunca me passou uma coisa boa.

- Eu sei que errei. E vim aqui justamente para reparar meu erro.

- Como você fará isto. Matando-se?

- Não. Eu gostaria que você também ficasse com a minha namorada.

Mathieu não disse mais nada. Deu de ombros e saiu caminhando. Preferiu sair para não gerar um desastre.

- Leonard.

- Olá Mathieu. Que bom que você me ligou.

- Meu emocional se apaziguou depois daquilo. Essas coisas acontecem mesmo. Ainda mais com pessoas bem resolvidas como nós.

- Sim.

- Eu queria que você marcasse com a Brigitte na Boulangerie Paul que fica no Cartier Latin, próxima a livraria da Taschen.

- Que bom que você me entendeu e aceitou minha proposta. Falarei com ela. Pode deixar.

Marie não sabia muito bem do que eles precisavam conversar, soube apenas que Mathieu não apareceu. Marcaram novo encontro e ele novamente descumpriu o combinado.

- Não. Prefiro não sair hoje, Brigitte.

- Leonard desde que começamos a namorar sempre fomos a este pub aos domingos. O que houve?

- Não houve nada. Não quero.

Leonard passara a segunda-feira feira inteira na Sorbonne.

- Leonard? É Marie. Tudo bem? O que você acha de nos encontrarmos no mesmo lugar hoje?

- Hoje não vai dar. Marcamos outro dia. Beijos

Abre a porta de casa. Brigitte vem abraçá-lo. Ele cumpre o protocolo, mas não consegue transmitir nada. Ela percebe. A semana se passa e seu comportamento se repete.

- Hoje vou me reunir com um colega para acabarmos um trabalho.

- O que está acontecendo com você Leonard? Você tem saído com Marie?

- Não tenho querida. Não há nada. Está tudo bem.

O fato de Mathieu não ter ido aos encontros mexe demais com Leonard.

“A justiça clama por igualdade.”

“ Há algo estranho acontecendo comigo. São as cobranças do curso. Estão cada vez maiores, não consigo mais parar.”

“A justiça clama por igualdade.”

“Eu não me reconheço mais. Sei que entender o ser humano é como querer esvaziar o oceano com uma taça, não há um fim. Nunca entenderei o que está acontecendo. Minha esperança se esvaiu”

“O que há? Não sei, mas uma hora terá que passar.”

“Minha alma parece ter me abandonado. Sinto-me como um vazio andante. Meu espírito está doente. Foi ele. Sim, foi. Foi Mathieu que me amaldiçoou. Eu preciso me livrar desta maldição. Rezo dia e noite e meu desejo não é atendido. Perambulo pela escuridão gelada.”

“Ele fez por vingança, eu sei. Não podia ter feito melhor, ou pior. Ele rejeitou Brigitte. Não consigo mais olhá-la. É como se ele tivesse me transformado num abutre para o qual sobra apenas aquilo que ninguém mais quer. Não consigo mais vê-la. Isto me deteriora.”

“Se ele transasse com ela eu teria minha paz. Meu coração perdeu a esperança. Ele matou minha decência. Não sou mais ninguém, não consigo desejar mais a pessoa que amo. Nada mais me restou. Esta é a minha maldição.”

“Toda vez que olho para Brigitte é Mathieu que me vem à mente. Ele fez uma marca indestrutível no meu amor. A justiça clama por igualdade. Preciso agir para me livrar da maldição”

“O tempo passa, e a angustia fica. Até quando poderei viver assim?”

“Por que mesmo estou acordando agora? Lembrei. Como poderia esquecer do dia da libertação. Foi no dia da libertação da opressão dos monarcas que esse pesadelo começou.”

“Hoje é o dia da luz. O dia da minha libertação. Serei livre como jamais fui.”

“ Ali estão eles. Estou com medo, mas devo comemorar só há o que comemorar”

“Olá”

“A faca. É agora. Força. A marca no meio da testa, bem onde eu queria... Ele nunca mais vai olhar para Marie sem lembrar de mim. A justiça foi feita. A igualdade foi alcançada. Preciso fugir.”

Comentários

  1. Gostei do conto, mas estes personagens parecem ter dupla personalidade..rs.
    Suas falas não condizem com suas atitudes. "Ainda mais com pessoas bem resolvidas como nós."
    OBS: no texto há várias citações ricas sobre Paris, ai logo no começo você coloca "trouxe a canga"? Onde estavam? Jardin du Luxembourg ou Guarujá? hehehehe...
    Bjos e parabéns Dani.

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  2. Claro que alguém que pense em tantos tipos de vingança só pode ter dupla personalidade. Em relação às cangas, os parisienses sempre as levam quando vão ao parque tomar sol.

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