CELESTIAL!

Mais uma vez tive a sensação de ter vivido o ideal, de ter reunido no plano onírico todas as perfeições concebíveis e independentes da realidade. Pareço ter nascido para viver lá, onde, para mim, tudo se parece mais adequado. Talvez eu devesse fechar os olhos para poder viver de verdade. O Esaú Wendler tem razão quando diz que “a realidade é o pesadelo do mundo dos sonhos.” Mas apesar desta minha fascinação pela subjetividade, sei que ela não moldará o mundo condensado no qual passo a maior parte do tempo.

Aquela maravilhosa música que vez por outra aparece no meu sonho me veio ter de novo esta noite. Quão bela ela é! A satisfação de sonhar só existe porque durmo esperando tê-la ao meu lado. Só para mim. Hoje estava muito forte, mais do que nunca. Ainda está próxima... como se tivesse viajado junto com minha consciência e agora também terá que enfrentar os desafios deste outro mundo, forçando-se para existir - assim como eu - numa realidade que não é a sua.



Onde está a pedra de cal? Tenho certeza de ter deixado-a por aqui. Meu quarto está cada vez pior. Beethoven também era bem desorganizado, talvez porque seja mais fácil sê-lo ou quem sabe, a magnitude dos sons não o deixavam atentar para uma banal camisa jogada num chão sujo. Onde está o cal?

Será que por toda minha vida sentirei prazer em me apoiar na queixeira do violino? Ou em apertar a crina de cavalo do arco? Adoro arrancar os fios que se soltam toda vez que me exalto na expressão de um acorde mais romântico. Está desafinado, até mesmo ajeitá-lo me faz bem.

Ah a música! Na minha memória ela está tão clara! E se eu a trouxesse para cá? É mesmo, eu nunca havia pensado nisto. Talvez por temer que seu encanto enigmático se vá caso eu consiga colocá-la num ordinário aparelho de CD. Por outro lado, imagine poder ouvi-la sempre que eu quisesse. Eu seria tão feliz... e se estas notas não existirem na escala harmônica dos humanóides? E mesmo que existam, se fossem trazidas, talvez não seriam tocadas nem por Paganini num Stradivarius.

Eu queria tanto ter ajeitado aquela sinfonia que compus. Na época, fui um pouco desleixado, não valorizei a criação o tanto que merecia e a música se foi, solta como a água de um rio nos dias de tempestade. Senti um aperto no coração por ela ter se deformado no final. Tal como a argila que, na conclusão de uma escultura, se desfigura por não ter tido o último toque do artista. Acabou por sair sem a presença da minha alma. Despois que estava na partitura da orquestra não pude mais reparar. Até tentei fazer algo semelhante posterirormente, mais bem acabado, mas aqueles esnobes cricris me taxaram de repetitivo. Ainda bem que até mesmo Vivaldi recebeu este atributo, diziam que todas as suas composições eram apenas variações das Quatro Estações.

Dói ter perdido aquela melodia sem que eu pudesse dar o melhor de mim. No entanto, sofro ainda mais por não poder ouvir a orquestra tocando esta melodia celestial que ouço quando durmo. Onde ela estará? E caso eu a encontre conseguirão os músicos tocá-la? Há certas mulheres que de tão belas parecem não merecer homem algum. Mas para minha tristeza, acabam casando-se com um sujeito qualquer, que de impressionante nada tinha. Talvez eu devesse simplificá-la. Tornando-a viva a partir de toques singelos. Nada da exuberância de Wagner, talvez o celestial esteja mais próximo da simplicidade de Grieg.

Vou começar com Ré. Simples como aquela sonata de Bach. Não, não... O simples não é a solução, mas apenas uma fuga que me faz parecer capaz de finalmente realizar este estorvo. Opa, não posso chamar assim a mais bela sonoridade que alguém já escutou e que ninguém conseguiu compor. Vamos lá, de novo. Quem sabe o Lá? É melhor eu ir para o ensaio, já devo estar atrasado.

Agora eu consigo. Está aqui. Pá pá pá pá pá pá pá... eu ouço. Verbalizar não dá, mas ela está aqui, tão perto que consigo tocá-la. Se eu fosse um sensitivo como aquele cara que toca comigo, poderia ver as ondas sonoras movimentando-se neste quarto. Por que as pessoas fazem a cama se todo o dia ela vai amanhecer desarrumada? Não sei, tampouco vou arrumar. Preciso de um papel e uma caneta. Pá pá pá pá pá pá pá... daqui não passa, não vai. Por que? ARGH!!! O ensaio, o café, vou me atrasar.

Ela está mesmo querendo vir ao mundo, nunca havia me pegado de surpresa num lugar agitado como esta padaria. Estou ouvindo-a muito alto, como se tivesse com fones de ouvido. Os sons lá fora não escuto mais. Ela me quer como uma princesa que, apaixonada pelo plebeu, mesmo tendo todo o conforto e a segurança que o um mundo medieval possibilita, luta para se libertar do mundo de fantasia e ilusão que vive dentro do castelo.
- Tem um papel e uma caneta para me emprestar?
- Serve este aqui?
- Não tem maior?
- Pode ser de pão?

A donzela quer tanto que talvez até aceite vir ao mundo num papel de saco de pão. Vem que eu te quero. Pá pá pá pá pá pá pá.... Estou conseguindo porém, preciso manter o foco - tá tá tá tum tá - se não ela se vai. Vou tomar mais um café para manter minha concentração. Se foi. NÃO! Que raiva!

Mas como ela é dengosa, talvez o simples fato de eu ter desejado outra coisa que não fosse somente sua atenção fez com que ela se fosse, sem dar pistas de quando voltará ou quem sabe foi encanto do amor romântico que acaba sempre que se realiza.

Mais um dia que amanheço sem você. Já se vão três meses que você se foi. Continuo te procurando em todo o lugar onde que vou. De fato, me tornei uma pessoa melhor na sua ausência. Estou mais atento e escuto atentamente todos os sons a minha volta, talvez você apareça na freada de um carro, no timbre do comerciante da feira que se esgana para vender seus tomates ou ainda no som das árvores que dançam com o toque do vento. Mas meu coração parece ter perdido o brilho e bate sem ligar para a vida. Tornou-se uma máquina funcionando mecanicamente, da parte mais sentimental do corpo se transformou numa engrenagem que se move graças a um resquício de esperança de tê-la novamente. Desvio todos os dias o meu caminho para comer naquela padaria onde a tive pela última vez. Nunca mais tomei café desde aquele dia e olho fixamente para o quadro que avistava quando você surgiu. Volta para mim Celeste. Você possui nome agora e se soubesse a falta que me faz, você não faria isto comigo. A Arte está perdendo o sentido sem você e minha música não tem mais alma.

Um dia um amigo meu me disse que a melhor maneira para esquecer uma mulher é encontrar outra. Talvez ele tenha razão, pois se substituo um condicionamento por outro, vou apagando as marcas antigas no meu psiquismo. Eu vou esquecê-la. Ela é não é real, só tem força porque não posso tê-la, tal qual uma paixão romântica que tem na impossibilidade de acontecer a força motriz de sua existência. Vou voltar à tradicional escala harmônica e me contentar com o que é humano, mesmo sendo demasiado humano para mim.

Assim como um marido abandonado que para não perder a pose supervaloriza a nova amante, mesmo sabendo que a nova jamais chegará aos pés daquela que ele tinha, não poderei sair tão por baixo desta situação. Este é o momento para ousar, compor, assim como Lizt, uma sinfonia para eu mesmo solar. Com certeza, depois de um final triunfante, com os fagotes soprando um allegretto vibrante e o rufar dos tambores fazendo o teatro tremer, eu a apagarei completamente da minha memória com um último acorde antes de ser ovacionado pela platéia.

Minhas mãos estão tremendo. Eu ensaiei tanto, não há porque ficar nervoso agora. Eu sei que nunca solei num concerto de minha autoria, mas isto não é motivo para tensão. Não há diferença entre ensaio e apresentação, pelo menos é o que dizia Leonard Bernstein, embora isto não seja verdade, agora terá que ser. Não posso mais tremer. Respiro.

Não estou sentindo entusiasmo da platéia. A pior coisa para um artista é perceber que as pessoas não estão correspondendo. Será que é o meu desempenho, ou será que é a música? Isto seria ainda pior. Bom, também não posso depender da aceitação dos outros para me expressar. O que? É você? Agora? Não ... Eu não posso. Por favor saia dos meus sentidos, você está me atrapalhando, e não a desejo mais. Preciso me concentrar, o andamento, vou olhar apenas para o maestro. Vá embora. Estou te vendo Celeste. A música parou. É agora. A única chance que tenho de ter. O maestro está me olhando com cara feia, mas é você que eu quero, você está linda. Todos os violinos estão me olhando e você está surgindo tal como eu sempre escutei. Sinto a platéia, o maestro não entende, mas deu de ombros. Que lindo! É você como eu sempre sonhei... Musica vinda do Céu.

Comentários

  1. que lindo dani!!! parabéns...sempre espiei seu blog, muuuitto bom...beijos Paty carvalho - ex unid. ibirapuera

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  2. Expectativa mais que superada!
    Tua escrita esta cada vez melhor!
    Fico feliz de ter dado uma “ajudinha” na escolha do personagem! Rendeu este violinista hein?!

    Parabéns Dani, Bjo!

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  3. Te puxou Daniel! Gostei mesmo!
    Abs, René

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  4. Estava procurando a autoria, a fonte, talvez fosse trecho da biografia de um famoso músico... parabéns Dani, está lindo!

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