Hamlet e a incoerência existencial





A história do príncipe Hamlet que descobre que seu tio matou o próprio irmão, seu pai, para casar-se com sua mãe e assumir o trono da Dinamarca é bastante conhecida. O que vamos discorrer aqui é uma importante questão que essa estória levanta.
Agir ou contemplar, eis a questão?
William Shakespeare (1564-1616) era um gênio, a profundidade de suas obras contrapondo-se com a beleza poética de sua escrita confirmam isto. Não acredito que em Hamlet, ele desejara apenas demonstrar que agir em desacordo com os ditames da nossa consciência possa nos levar à loucura, tal como acontece na história na qual o jovem Hamlet não sabe o que fazer perante a inusitada situação em que se encontra. De um lado, não tem certeza de que o assassinato de seu pai foi premeditado, do outro, vozes interiores clamam por vingança. O conflito se agrava à medida que ele nada faz, embora mais provas surjam para mostrar que foi mesmo seu tio quem matou seu pai.
O choque entre consciência e ação chega ao ápice quando Hamlet se depara com o questionamento que ficou para a história da literaturaSer ou não ser, eis a questão”.
O jovem vivia intensamente um conflito que o induzia a pensar que ele poderia estar louco, pois de um lado ouvia sua consciência induzindo-o à observação, que se contrapunha a sentimentos que lhe ordenavam a ação.
- Poderei fazer algo contra minha própria mãe e meu tio? Observação.
Conflitando-se com:
- E se as minhas visões estiverem certas e eu não agir? Estarei consentindo. Ação.
- Mas e se essas visões que me induzem a crer que eles tramaram tudo isso contra meu pai estiverem erradas? Melhor é nada fazer. Observação.
- No entanto, como poderei viver com as constantes mensagens da minha consciência me induzindo a agir? Ação
E a conclusão a que o jovem chega é que qualquer que seja a sua atitude gerará necessariamente dor. Se ele nada fizer e apenas observar, certamente se sentirá mal. Mas, mesmo matando quem envenenou seu pai, o que seria aparentemente o mais correto a se fazer, carregaria o karma de ter assassinado seres humanos e, além disto, seus parentes.
Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, (Observação)
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim?” (Ação)
Talvez o maior escritor inglês de todos os tempos exagerara no conflito entre contemplar e agir, para trazer à tona um embate que é muito mais antigo e ao mesmo tempo presente do que imaginamos.
O grande dilema da vida
Os pensadores da filosofia especulativa naturalista da Índia antiga chamada Sámkhya, se questionavam sobre este temapelo menos 5000 anos atrás.
Na montagem de sua cosmogonia, depois de profundas experiências meditativas, concluíram que no início do cosmos existia apenas uma partícula condensada de consciência. O conceito de consciência como algo primordial de todo o cosmos se alinha muito com o primeiro elemento do Big Bang na teoria ocidental.
Esta essência absoluta, não era afetada pelas dualidades que vivemos em nossas vidas. Para ela, não havia certo nem errado, claro ou escuro, ela somente observava e simplesmente era. Não interagia, e nem era afetada por coisa alguma. Para a consciência pura, os conceitos não se dividiam em pares de opostos. A ela, bastava ser eternamente, em todos os lugares que existiam.
Num determinado momento, essa essência de consciência sentiu necessidade de se manifestar. E assim foi. Neste instante, entra na estória o que eles chamaram de Prakriti, que são todas as manifestações da natureza, desde as coisas mais densas como os grãos de areia até estados sutis de consciência como a intuição. A consciência é essencialmente diferente da Prakriti, pois se a primeira é estática, observadora e perene, a segunda se contrapõe sendo agitada, mutável e extremamente dinâmica. Apesar dessas diferenças essenciais, a consciência enredou-se em todas estas manifestações da Prakriti, perdendo sua liberdade inicial. Nos deixando esse enorme abacaxi, com o qual nos deparamos a cada momento de nossas vidas e que está exageradamente retratado em Hamlet.
Agir – sendo parte da Prakriti e nos afastando do que realmente somos - ou contemplar – sendo apenas consciência e deixando que os fatores não desejáveis da natureza nos assolem - eis a questão?
Para a linha de pensamento Sámkhya, o que somos é o que está por trás de tudo, uma consciência observadora que a tudo percebe. quando agimos, estamos algo - você pode estar empresário, estar atleta, estar artista - e assim se afastar desse EU, que simplesmente É. O fato de nos depararmos constantemente com a agitação do nosso emocional, não nos permite conceber quepor trás de todas as manifestações da natureza algo perene e eterno, inabalável pelas situações externas, o EU. A Consciência reflete-se nas emoções e nos pensamentos, muito embora seja essencialmente diferente deles. Tal relação cria a maior de todas as ignorâncias: a confusão do Ser com o Não-Ser, be or not to be. Que Hamlet não conseguiu sacar, ficando sem saber se agia pela vingança, gerando retornos kármicos desagradáveis, ou se apenas observava sendo constantemente incomodado por vozes internas que lhe jogavam na cara o atributo de covarde por ele nada fazer. A própria nomenclatura Sámkhya refere-se a consciência, por ela ter uma característica perene, como Ser, e a todas as outras manifestações mutáveis da natureza como Não-ser.
A questão que fica é: Como resolveremos o conflito de sermos consciência, que é essencialmente observadora, e vivermos num mundo que nos induz a agir? Isso não teria problema algum se não fosse o fato de que qualquer que seja a ação entrará em conflito com nossa essência, pois a ação gera reação, que nos joga no mundo das dualidades, do qual a consciência não faz parte, e onde sempre há o certo e o errado que nos leva à dor. O exemplo prático disso é vermos uma quantidade enorme de executivos extremamente dinâmicos que realizam muitos trabalhos relevantes em suas profissões, mas que não necessariamente se realizam pessoalmente.
Quando estabelecemos um contato mais próximo com o nosso Eu, somos. Entretanto ao agirmos adentramos no mundo mutável e doloroso da Prakriti. E mais uma vez vem a questão: Ser ou Não-ser, de que lado ficar?
Nesta questão preferirei não concluir, realizo-me em levantar a questão, e deixar para que você corte, respondendo o que nem Shakespeare se atreveu.
Ser ou não ser? Eis a questão.

Comentários

  1. Dani...muito legal o texto alias estou louca pra ver o teatro!!!
    Mas...vc acha que então para agirmos de acordo com nosso EU, nossa consciência, nós nunca deveriamos agir? Teriamos que ser "estáticos" sem ação para não gerar uma reação??
    Beijos

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  2. Esse é o dilema. Mas o fato é que temos que agir, caso contrário a natureza produzirá um karma desfavorável. Vou preferir concluir isso só no livro.

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  3. Olá, Dani.

    Se a consciência sentiu a necessidade de manifestação, criando a Prakriti, isso não induziria há pensar que não são coisas diferentes?
    Desse modo se vivemos aqui, somos a consciência (observadora, estatica), mas com a possibilidade da ação mutável) (Prakriti).
    Onde eu quero chegar?
    Será que não podemos chegar ao ponto de fazer a ação e ao mesmo tempo estarmos conectados com nossa essência?
    Talvez o sofrimento venha de esquecermos da essência e acharmos que só existe a Prakriti, ou melhor levar muito a sério a dualidade, onde talvez acho eu, ela deva rir desta situação, onde acreditamos realmente na dualidade.
    Será que não podemos estarmos empresário, artista, etc. E estar contemplando, observando tudo isso?

    Vou parar por aqui, se não eu mesmo vou me perder, hehehehe.

    Maha abraço.

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  4. André sua resposta merece elogios. Vou comentá-la.

    "Se a consciência sentiu a necessidade de manifestação, criando a Prakriti, isso não induziria há pensar que não são coisas diferentes?"

    ESsa parte é a única que eu discordo. Vamos ver o que Mircea Eliade dis a respeito.
    "Neti! Neti!, exclama o sábio das Upanishads: Não! Não! Tu não és isso, tu não és aquilo!
    Em outras palavras você não pertence ao cosmos decaído, tal como você o vê agora, você não é necessariamente arrastado para essa criação em virtude de alguma lei própria do Ser que você é. Pois o Ser não pode sustentar nenhuma relação com o não-Ser. Ora a natureza não possui verdadeira realidade de essência, ela é, devir universal e acabará por se desagragar."

    Mas nesses comentários você chegou ao ponto.
    "Será que não podemos chegar ao ponto de fazer a ação e ao mesmo tempo estarmos conectados com nossa essência?"
    CERTAMENTE E ESSE É O OBJETIVO

    "Talvez o sofrimento venha de esquecermos da essência e acharmos que só existe a Prakriti, ou melhor levar muito a sério a dualidade, onde talvez acho eu, ela deva rir desta situação, onde acreditamos realmente na dualidade.
    Será que não podemos estarmos empresário, artista, etc. E estar contemplando, observando tudo isso?"

    PERFEITO!!!
    Parabéns e obrigado pela atenção.

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  5. Olá, Dani.

    Eu fiquei um pouco confuso com a parte que vc discorda.
    Compreendo o "tu não és isso, tu não és aquilo", mas o lance do Cosmo decaido e que a natureza não possui verdadeira realidade de essência, não entendi.
    Vou refletir mais sobre isso.

    Abraços.

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