Vem da alma o que é perene


Quando ele adentrou, decidido do que ia fazer, olhou para os lados e percebeu olhares de desprezo das pessoas que sentadas nas mesas pouco sentiam o sabor das ostras que engoliam e muito se importavam em julgar cada convidado que surgia no salão. Atitudes esnobes não interferiam tanto no seu emocional, pois eram comuns nos locais mais refinados que eventualmente freqüentava. No entanto, em alguns momentos fazia o pensar em desistir de seus projetos e voltar a viver tranquilamente em sua terra natal. Esse desapreço dos que se achavam no topo da cadeia alimentar, gerava uma sensação bia em nosso personagem, ao mesmo tempo o estimulava a querer realizar seus objetivos e provar que qualquer tipo de preconceito é uma grande ignorância, pois se nascemos seres humanos, tudo podemos nessa vida. Mas, também lhe fazia sentir-se um ser estranho naquele ninho, com vontade de sair. Entre lutar ou fugir, preferia sempre a primeira opção por saber o tamanho da transformação que poderia fazer em si mesmo e nos locais que vivia. Quanto mais lucidez adquiria com a vida mais aumentava sua responsabilidade perante todos

Prêman Bhavani nunca imaginou que freqüentaria uma festa tão luxuosa como aquela, talvez o que aquele seu colega inglês gastou nesta noite, daria para alimentar todo o seu estado durante um ano. Tamil Nadu é uma região pobre do sudeste da Índia onde moram os verdadeiros nativos que migraram para , há aproximadamente 3500 anos, durante a primeira grande invasão ariana no noroeste do país. Sua cultura foi herdada do povo drávida, a mais brilhante civilização que habitou a Índia. Uma tradição com mais de 5000 anos de conhecimento acumulado, que desenvolveu uma forte base filosófica e um know-how de ampliação do prazer nas atitudes corriqueiras. Claro que muito se perdeu com a travessia de mais de 3000 km que seus ancestrais fizeram a para escapar das maldades cometidas pelo povo sub-bárbaro, e ainda mais pelo passar de todos esses anos.
Infelizmente, essa sabedoria não serviu para gerar riquezas no sentido que o mundo ocidental entende esse termo. Entretanto, este povo conservou algo extremamente precioso, um tipo de atitude que foi transmitida pelos anciões daquelas tribos durante todos esses milênios; a capacidade de travar um contato profundo com sua consciência e permanecer conectado com ela durante quase todos os momentos da sua vida. Isso fez com que essa população, apesar da fome e das dificuldades que passa, brilhasse nas artes, expressando muito bem aquilo que de mais profundo e belo o ser humano possui.
A aproximação de sua interioridade mantinha Prêman confiante de que estava agindo corretamente ao caminhar em direção a aquela que, no seu ponto de vista, era a moça mais deslumbrante da Universidade. Seus colegas não conseguiam entender o que ele via de tão magnífico em Amy, mas ele sabia. O jovem escritor vinha melhorando a capacidade de vencer imposições em seus desejos, deixando de lado as vontades que não eram suas, mas de outras pessoas ou da sociedade, que empurra através da educação formal, uma fórmula de felicidade pré-concebida, dizendo o que é melhor para todos nós. Ele estava ciente do quanto Amy poderia interferir positivamente em sua vida caso tivessem um relacionamento mais profundo.
A cada dia mais, Prêman vinha conseguindo optar por aquilo que realmente seria melhor para ele, permitindo que seus sentidos internos se manifestassem. Claro que nesse aprendizado, que ele considerava o mais importante da existência humana, havia momentos em que seu ego prevalecia, fazendo parecer que algumas decisões com influências externas fossem suas. Na verdade, quando centrava-se apenas em sua personalidade manifestava egoísmo, seguindo condicionamentos e vontades alheias. Sabia que havia agido de maneira dissonante da consciência, quando suas decisões posteriormente lhe causavam arrependimento ou ansiedade, e por isso tentava seguir sempre o que realmente era melhor para ele e não aquilo que seus amigos diziam.
Foi essa capacidade de entender estados internos e descrevê-los com precisão cirúrgica que chamou a atenção do grande mecenas Maharajah Sir Manindra Chandra Nandi de Kassimbazaar. O marajá sempre se interessou por obras que relevassem as manifestações mais profundas dos homens e o conseqüente aprimoramento de tais estados. Vinha financiando durante toda a sua vida, intelectuais que propagassem ao mundo a parte filosófica da cultura hindu. Sir Manindra tinha ficado encantado com um conto de Prêman, no qual ele descrevia um pôr-do-sol no rio Ganges repleto de insights e luz. Manindra não conseguia compreender como alguém tão novo realizara uma façanha jamais atingida por outro escritor, traduzir em palavras estados de consciência que estavam muito acima do plano intelectual.
Ele havia lido muitos livros da escola expressionista ocidental, da qual seu autor favorito era Franz Kafka, mas incomodava-lhe o fato de que esses escritores relatavam apenas as angústias, dores e mal-estares dos seres humanos, deixando de lado os momentos de plenitude que motivam cada amanhecer das nossas vidas. Manindra acreditava que o que há de mais puro e belo dentro de nós deve ser também difundido. Ao ler esse conto de Prêman, o mecenas se sentiu orgulhoso de ser compatriota e contemporâneo do jovem escritor e se dispôs a bancar-lhe um curso de aperfeiçoamento fora da Índia.
Para Manindra, Prêman estava fundando um novo estilo literário, que o marajá apelidou de samadhismo, referindo-se ao tão desejado estado de hiperconsciência denominado samádhi. Segundo a tradição hindu, quando alcançado, conhece-se do infinitesimal ao infinito, obtendo-se o conhecimento de si próprio e do universo experienciando todos os estados de consciência que o homem pode atingir.
Quando recebeu a notícia do mecenato, a felicidade de Prêman era tanta que não cabia nele. Extrapolava os limites do seu corpo, crescia sem barreiras envolvendo sua família, a pequena aldeia onde morava, o sábio ancião que lhe ensinava a antiga filosofia dos seus ancestrais drávidas, as casas, as árvores e as montanhas, chegando até o cume dos Himalayas. Ele teve a sensação que tudo o que havia feito em sua vida tinha como propósito prepará-lo para vivenciar aquele momento da maneira mais completa que fosse possível. Ele vibrou e valorizou muito tais instantes, tendo a sensação de que vivera horas naqueles minutos que sucederam a notícia. Sua felicidade rompia os limites do coração, fazendo-o reparar que quando esse estado cresce demais, na mesma proporção fortalecesse o desejo de compartilhá-lo.
Logo que descobriu que fazia parte da felicidade o desejo de partilhar, Prêman decidiu ensinar tudo o que sabia, ajudando outras pessoas e consolidar suas alegrias. Foi isso que o motivou a escrever contos e distribuí-los entre os aldeões, levando a sabedoria que aprendia e vivenciava a outras pessoas que também conseguiram se desenvolver e tornar o mundo um lugar melhor para se viver. Desta maneira, passando de mão em mão, seu texto foi parar nas graças de Manindra.
Quando o Maharajah disse que Prêman poderia escolher qualquer cidade para fazer o curso de literatura, o escritor chegou a cogitar Paris, a cidade-luz que ilumina nossas mentes. Onde a intelectualidade e a filosofia que pairam no ar, foram unidas por Jean Paul Sartre, em forma de literatura, vencedora do Nobel, que o filósofo se recusou a receber. Mas na França, teria que aprender um novo idioma, o que lhe tomaria um tempo que não tinha. Seu destino mais certeiro era a Inglaterra, mais especificamente a Universidade de Oxford.
Londres lhe encantava não apenas pela língua, que apesar do seu sotaque eraquase” a mesma. No seu povoado todos falavam Tamil, língua neo-sânscrita, mas, como em cada parte do seu país se usava uma das 23 línguas oficiais, todos acabavam aprendendo inglês para se comunicar entre si. Prêman queria aprender a cultura ocidental, que conhecia apenas pelos livros, para introduzir nela a profundidade da filosofia dravídica. Mesmo tendo que conviver com os ingleses, que não tinham sido nada elegantes, como desejam que o mundo os veja, no trato com os indianos durante a colonização, Prêman não via a hora de conhecer Londres.
Através da leitura dos contos de Charles Dickens, ele aprendera que a Inglaterra também fora pobre um dia, e que a fome também assolou os menos privilegiados daquela terra. Ele acreditava que se eles conseguiram dar a volta por cima e se desenvolver, por que não poderiam fazer o mesmo os talentosos tamis? Prêman tinha convicção na capacidade humana de se aprimorar e conseguir tudo o que se propõe a fazer.
Sabia também que o mundo caminha para um distanciamento dos condicionamentos e uma aproximação da consciência. Aqueles que conseguirem direcionar as pessoas a esse caminho, não apenas as farão mais felizes, mas também serão muito bem-sucedidas. Prêman tem a certeza que nascera para isto e que será um bandeirante dessa ideologia.
Do outro lado do salão estava Amy, estudante de marketing, apaixonada pelo movimento do mercado e que cursava agora uma pós-graduação em economia e administração. Ela era uma moça decidida e talentosa. Aprendera desde muito cedo com seu pai a importância de se relacionar bem com todas as pessoas. Foi esse aprendizado que a possibilitou conhecer Prêman. Apesar de viver em constante conflito, por causa do tipo de educação que recebeu, Amy acreditava nos valores da burguesia inglesa, na qual foi criada. No entanto, ela desejava transmitir às pessoas de maneira mais enfática o carinho que sentia por elas, mas, tinha o receio de ser tachada de uma mulher sem princípios morais, por manifestações demais afetuosas. Por isto, tinha atitudes deliberadas, o que prejudicava imensamente suas sensações mais espontâneas.
Amy gostava bastante do ato sexual, achava que poderia sempre explorá-lo mais, por ter naquele momento a oportunidade de extravasar seus sentimentos mais puros. Jamais deixou isso transparecer, mesmo aos seus namorados, que poderiam interpretá-la de maneira errônea. Com o tempo, ela vinha perdendo seu impulso às realizações e ao apetite sexual. Contribui muito para isso, seu primeiro chefe, que deixou bem claro que se ela desejava subir no ambiente corporativo devia comportar-se o mais parecidamente com os homens, pois eram eles que entendiam dos negócios e reprimir desejos amorosos. Atitudes mais femininas, como um zelo sincero pelas pessoas e a obediência à intuição deveriam também ser deixados de lado.
Ficou assustada no dia em que leu num livro de Reich, sobre a couraça da personalidade. Sabia que estava amadurecendo com o resfriamento do seu coração, mas aquilo era normal em quase todos os adultos com que travava contato. No entanto, Amy tinha medo que esse escudo, criado por medo e proteção, impedisse a geração de sublimes emoções, assim como havia acontecido com seu exemplo mais próximo, sua mãe. Quando mais jovem, sempre foi muito ativa e era ela que organizava sua turma de amiguinhas para vender limonada pelas ruas. Essa propensão às vendas lhe motivou a estudar marketing e trabalhar em uma grande empresa.
Amy passou a acreditar que a melhor vida a ser vivida, por uma mulher inglesa, era ao lado de um marido, que certamente ocuparia um cargo mais alto que ela dentro da empresa, e junto com ele ter filhos para poder se ocupar nas horas vagas.
Ela nunca sentiu nada por Prêman, a não ser uma certa admiração que poderia ser o início de uma afeição, mas que ela jamais deixaria crescer. Primeiro por saber que seu tempo na Inglaterra era limitado, pois em menos de um ano ele voltaria para o sul da Índia, segundo por ele ser indiano e de uma família bem pobre. Embora Amy não se importasse muito com isto, não conseguiria suportar a pressão que seus familiares e amigos fariam para que um relacionamento entre eles não desse certo.
Um dia ela lançou um desafio a Prêman, para que ele escrevesse em uma semana, um texto sobre o amor dentro da fria sociedade russa. O indiano ficou desesperado, pois nunca havia travado contato algum com aquela parte do mundo. No entanto, se aproveitou do entusiasmo de estar próximo da sua amada para dormir menos, estudar e escrever mais. Foram poucas horas de sono naquela semana, pois ele jamais poderia decepcioná-la. Leu algumas obras de Tchekov e Turgueniev, mas onde encontrou o entendimento da emoção russa foi ouvindo o mais triste compositor de música clássica do mundo, que nasceu naquele país. Tchaikovsky traduzia em sons o sentimento de toda uma nação, fortemente oprimida pelos costumes rígidos e pelo frio.
O texto ficou lindo e fora inspirado no próprio Tchaikovsky, falava de um relacionamento homossexual durante a impiedosa ditadura de Stálin. Amy chorou ao lê-lo e sentia medo de gostar de alguém que não correspondesse ao que a sociedade inglesa achava que era certo. Por isso, sempre que uma vontade de se aproximar dele aparecia, ela a reprimia e fazia justamente o oposto. Não atendia ao telefone e não respondia seus e-mails, também passava a evitá-lo no campus.
Nesses momentos, Prêman vivia o conflito ego versus consciência. O primeiro dizia que ele devia desistir dela e que ela não o merecia. Às vezes, ele agia de maneira mais drástica, deletando seu telefone da agenda e tentando por tudo evitá-la. Mas, quando uma lucidez maior tomava conta de sua consciência, ele conseguia colocar-se no lugar dela e entender profundamente suas atitudes. Sabia que se mantivesse em contato com sua sabedoria interna o que fosse melhor para eles acabaria por acontecer, seja viverem juntos ou crescer ainda mais com o conhecimento adquirido naquela experiência.
Amy não compreendia a atenção demasiada que Prêman a dedicava. Ele chegava ao ponto de sair nas ruas para fazer pesquisas de mercado para embasar os trabalhos da moça. Este tipo de atitude fazia com que ele descesse na sua balança de oferta e demanda, e ela sentia menos desejo em vê-lo. Ao mesmo tempo, achava que se tivesse ao seu lado um homem compreensivo e atencioso seria mais feliz, no entanto, não acreditava que ninguém pudesse manter esse nível de cuidado durante uma relação estável de mais de três anos.
Prêman Bhavani fora criado dentro de uma sociedade matriarcal, na qual as mulheres assumiam prioritariamente os postos de comando. Elas eram vistas como seres superiores e os homens permitiam que esse poder extra que elas possuem os tocasse, estimulando seu desenvolvimento pessoal. Era quase devocional a atenção que ele dedicava a sua amada. Para ele, natural, pois aprendeu com seu pai e seus tios a agir desta maneira com suas deusas.
Amy Prêman chegar, tenta demonstrar um pouco de desprezo, valorizando sua atenção. Ele está muito emocionado, de uma maneira que ela jamais viu. Até mais que o dia em que ela tocou sua mão para lerem juntos seu romance favorito, e em voz alta Prêman declamou:
"Mas o homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento."
Eles filosofaram por horas e concluíram juntos que se os sentimentos mais profundos, aqueles que vêm da nossa essência, forem seguidos, certamente estaremos no caminho certo e a plenitude da vida nos acompanhará. Para ela, aquilo fora algo comum, que poderia acontecer com qualquer pessoa, mas para ele fora um momento sublime no qual ela estava dizendo em outras palavras que o queria ao seu lado.
Foi lembrando aquele momento e extravasando tudo o que sentiu desde que a conheceu, há oito meses, na biblioteca de Oxford, que ele escreveu o poema, que no meio do salão, na frente de toda a alta sociedade inglesa a entregara.
Vem da sua alma o que é perene.
Um arco-íris que fica e uma encantadora beleza que penetra.
Passa longe da sua existência o que se esvai o que estraga e extingue-se.
A desgastante instabilidade não existe, e dá lugar a um deleite de SER e não de ter ou estar.

Estar ao seu lado é travar contato com o que de mais perfeito a natureza conseguiu manifestar.
Ou estarão tais atributos de SER acima dela mesma?
Não me importarei ou conseguirei desvendar tamanho mistério, me gratifico apenas em me aproximar e existir ao lado teu.
Amy não sabia como agir diante daquela situação. Sua admiração por ele crescera nos últimos dias e ainda mais depois de ler o poema. Ela olha para o lado e que muita gente a observa, isso a deixa constrangida e com vontade de estar frente a frente com ele, mas em outro lugar. A boca macia de Prêman está muito próxima a dela, e embora ela não o ache belo sente vontade de beijá-lo. Seus pais e colegas lhe assombram a mente, e ela pensa que todos desaprovarão tal atitude. Acha que não pode e não o fará. Volta a olhá-lo e Prêman firmemente lhe diz o quanto eles se realizariam caso se unissem, a vontade de tocá-lo retorna, novamente ela não sabe o que fazer e não faz.
Eles se afastam, Amy sai em direção ao toalete, confusa, triste e ansiosa. Ao retornar pega uma taça de champagne e vai conversar com as amigas. Prêman continua na mesa, não se sente desamparado. Cresce nele uma sensação de que fez o que devia ser feito, sabe que quem segue a consciência, a parte mais perene do que somos, agirá sempre pelo longo prazo. Ele agiu da melhor maneira possível, fez tudo o que pode e como não conseguiu o resultado que queria, entregou o fruto das suas ações a uma vontade maior que a sua, cujo os desígnios muitas vezes são incompreensíveis...

Comentários

  1. Ah que maravilhoso! Adorei o titulo hehe
    Parabens pelas resenhas críticas do blog, mas também por expor sensibilidade através de um conto como esse.
    beijos
    May

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  2. eu quero saber oq e perene

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  3. do Lat. perenne


    adj. 2 gén.,
    que dura muitos anos;

    permanente;

    que não acaba;

    incessante;

    ininterrupto;

    contínuo;

    eterno;

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