Os condicionamentos e a liberdade

Enquanto a sociedade ocidental se debate no assunto da condição humana (até que ponto o homem é condicionado por sua fisiologia, sua hereditariedade, seu meio social, pela ideologia cultural da qual participa, por seu inconsciente e, sobretudo pela História, por seu momento histórico e por sua própria história pessoal) os hindus, há muito tempo, já trabalhavam para libertar o homem desses condicionamentos. Possibilidade negligenciada no ocidente.

O Hinduismo parte de uma visão altamente pessimista ou realista, a de que o homem é condicionado e por conta disso praticamente não possui livre-arbítrio. Reconhecendo o problema fica mais fácil buscar uma solução para essa grande questão existencial. Libertar o homem daquilo que foi imposto e deixar que este manifeste sua verdadeira identidade.

Por não conseguir vivenciar suas reais vontades nós ficamos invariavelmente presos ao que a sociedade nos impõe, no entanto o sistema indiano visa quebrar essa tendência tomando mais consciência de nossos condicionamentos e ampliando conseqüentemente o nosso poder de escolha.

Vejamos como o sistema filosófico naturalista do Hinduismo, chamado Sámkhya, entende esse conceito do condicionamento e descondicionamento.

O destino maleável ou karma
Segundo esse ponto de vista, quando nascemos involuntariamente adquirimos um karma. Uma espécie de destino maleável. Isso já é um grande ganho em relação a antigos conceitos que acham que o homem nasce com o rumo da vida determinado e imutável. Viemos ao mundo ganhando uma bagagem cultural e uma hereditariedade, mas poderemos direcionar nosso destino dependendo de como vamos agir durante a nossa existência.

As impressões ou samskáras
Quando criança, teremos as primeiras impressões do universo que nos cerca. Essas leituras do mundo são chamadas samskáras. Elas serão classificadas em três grupos dependendo da qualidade da experiência:
- Positiva, se for prazerosa;
- Negativa, se for dolorosa;
- Neutra, se não causar grandes impactos em nossos sentidos.

A partir da categoria percebida, seguiremos um dos mais fortes instintos animais que é fugir da dor e se aproximar do prazer. Faremos de tudo para repetir os samskáras positivos e evitar os negativos. No entanto, sensações são mutáveis e dependem diretamente de nossa hereditariedade e influências culturais. São as pessoas que nos educam, nossos amigos e o meio onde vivemos que determinam para nós o que é prazeroso e o que é doloroso.

Vejamos o exemplo do cigarro. Todo fumante não teve deleite algum quando experimentou seu vício pela primeira vez, certamente, ele detestou a experiência. Na ordem natural, ele deveria evitar esse ato e jamais repeti-lo. Não obstante, no meio em que ele vive as pessoas fumam. Se já não bastasse, ele vê uma propaganda com muita gente jovem e contente tragando cigarros e pensa que se fizer o mesmo alcançará a felicidade. Ele repete forçosamente esse ato até se acostumar. Em pouco tempo, a indústria do tabaco ganhou mais um ávido cliente.

O que vemos nesse caso é que os sentidos não são perenes, eles se moldam de acordo com o meio em que estamos. Observamos também, que as impressões que inicialmente foram classificadas como dolorosas podem passar a ser catalogadas como prazerosas. Tudo vai depender de influências externas.

Mostra-se assim claramente o grande poder que a hereditariedade possui em nossas decisões e o quanto ela limita nosso livre-arbítrio. Temos pouca liberdade de escolha, pois vamos sentir quase sempre sobre o prisma daqueles que nos ensinam e dos que estão a nossa volta e poucas vezes agiremos por vontade própria. Se não pararmos para perceber essas interferências em nossas decisões, não agiremos para mudá-las. Viveremos um determinismo ao estilo de Almodóvar, seguido o que nos foi incutido como bom ou ruim e não experienciando aquilo que realmente sentimos. A realidade é sempre construída a partir de crenças já pré-estabelecidas.

Os condicionamentos ou vasánas
Quando uma impressão é reproduzida várias vezes ela passa a outra categoria recebendo o nome de vasána. Com a repetição constante ela deixa de ser uma leitura dos sentidos e se torna um condicionamento.

Vasána é um termo sânscrito que significa leito. Para entender o sentido da palavra, imagine que a mente vem ao mundo sem nenhuma impressão, como uma folha de papel branca. A cada experiência vamos fazendo uma pequena marca em nossos registros e classificando-a. Quando repetimos as ações prazerosas, fazemos vários sinais iguais no mesmo local criando com isso um leito, daí o nome vasána. Nossa tendência é repetir as impressões positivas sempre que tivermos oportunidade. O condicionamento em si não é algo ruim, ele é inevitável e em muitos casos ajuda-nos a tomar decisões mais rápidas. Imagine o transtorno que seria você não ter o condicionamento da ordem que se põe uma roupa, precisaria pensar todo o processo e perderia muito tempo com isso.

O que prejudica é quando o vasána fica tão forte que passa a interferir em nossa vontade. Aquilo que a sociedade nos impõe como regras, na maior parte das vezes contribui para a nossa sofisticação como pessoas, entretanto não podemos ficar a mercê dessas normas. Sempre deve prevalecer nossa vontade de adotá-las quando importantes para o nosso crescimento pessoal ou não quando elas andarem num sentido oposto a esse. A grande armadilha do vasána é que ele tentará sempre reproduzir ao máximo as experiências, mesmo que em determinado momento essa não seja a nossa vontade, tirando-nos assim o livre-arbítrio. Não basta apenas se conscientizar deles, o viciado, por exemplo, sempre acha que vai reproduzir seu vício pela última vez, mas quando a situação aparece se ele não agir repetirá o condicionamento.

Quando a pessoa está longe da situação é fácil visualizar o que é melhor para ela, no entanto é quando a oportunidade de reproduzir o condicionamento ocorre que veremos o tamanho do seu livre-arbítrio. A tendência é a vontade tomar conta da consciência e prevalecer o velho hábito.
Vejamos mais um exemplo que ilustra bem essa situação.

Você passa em frente a uma padaria e sente um cheiro de bolo de chocolate. Na sua casa sempre havia bolo de chocolate e sua mãe o fazia com muito carinho. Esse bolo era adorado também pelos seus colegas de colégio e sempre foi seu lanche favorito na escola (karma), como aquele doce foi desde a primeira vez classificado como saboroso (samskára) ao sentir seu cheiro você adentra à padaria e o vislumbra. Sua cor e textura estão perfeitas. Seu aroma de tão intenso foi percebido lá de fora por você e uma vontade incontrolável faz com que você solicite um para o atendente. (samskára) Colocando-o na boca você saboreia por instantes intermináveis aquele delicioso bolo. A experiência é muito positiva e você sai da confeitaria feliz. No dia seguinte, ao passar pelo mesmo local, você sente o cheiro, entra na padaria, avista o seu objeto de desejo e repete a ação de experimentá-lo. Mais uma passagem pela padaria e as mesmas ações são repetidas (vasána). Chega um dia que você decide que não vai comer mais bolo de chocolate, você está de regime e isso é uma decisão legítima. Ao passar em frente à confeitaria... nesse momento que vamos medir qual é a profundidade do seu vasána e até que ponto ele rouba o seu livre-arbítrio. O pior é que a mente faz truques para parecer que a decisão é realmente sua. Frases como ``só hoje`` ou ``me reprimir é pior que não comer`` aparecem e atraem a repetição do condicionamento. Quanto mais você for conduzido a atualizar suas impressões positivas, menos vontade própria você terá.

Com essa história conseguimos vislumbrar o quanto nossa educação interfere na forma de lermos o mundo e conseqüentemente em nossas ações. Vemos também o quanto somos estimulados a repetir aquilo que nos satisfez, mesmo que essa não seja nossa vontade atual. A humanidade evolui muito devagar, pois temos condicionamentos muito parecidos com o que os nossos pais tinham. Aprendemos com eles o que era bom e o que era ruim e assim, pouco podemos fazer em termos de melhorias internas. Acabaremos por repetir condicionamentos. Nossas ações nos levarão há uma condição existencial muito parecida com a que tinham aqueles que nos embutiram os desejos. ``Ainda somos os mesmo e vivemos como os nossos pais`` diz a famosa música de Elis Regina.

O ciclo existencial ou samsára
A roda da vida ou do nascimento, existência e morte é chamada pelos indianos de samsára (não confundir com samskára, impressões) e se dá da seguinte forma: a partir de nossa hereditariedade vamos ter impressões do mundo, estas gerarão condicionamentos conforme o que nos foi imposto como bom ou ruim e isso gerará uma forma de viver parecida com a de quem nos precedeu.

KARMA – SAMSKÁRAS – VASÁNAS –
Os condicionamentos nos levarão a ações que recomeçam o ciclo
KARMA – SAMSKÁRAS – VASÁNAS e assim ad infinitum..

Para a corrente hindu espiritualista a única saída é aprender o que for possível nesta vida para morrer e reencarnar em uma condição um pouco melhor. Os naturalistas acreditam que independentemente de onde, quando ou como você nasceu, todo o ser humano tem condições de em vida alcançar a libertação. O objetivo é livrar-se do ser condicionado e atingir o que eles chamam de môksha, o liberado em vida. O môksha é uma pessoa sem condicionamentos, aquele que segue realmente a sua vontade.

A liberdade
O Sámkhya nos ensina uma saída para a prisão desse ciclo vicioso. Escaparemos fazendo o caminho contrário.
VÁSANA – SÁMSKARAS - KARMA
Toda mudança precede uma tomada de consciência daquilo que desejamos cambiar. O primeiro passo para sair de algum vício ou condicionamento é saber que ele existe.
Portanto você precisa:
- Aplicar um auto-estudo constante para saber quais condicionamentos estão influenciando de forma negativa o seu desenvolvimento pessoal ou privando sua liberdade de escolha.

No entanto só observar não basta e mudar é muito mais trabalhoso do que imaginamos. Os condicionamentos uma vez enraizados fazem de tudo para se atualizarem e jamais desejam morrer. A sugestão que fica para vencê-los é começarmos a mudar pequenos hábitos. Isso representa ganhar pequenas batalhas. Vasánas mais fracos são mais fáceis de serem vencidos.

Um exemplo simples pode ser você se determinar a arrumar sua cama todo dia pela manhã. Mais do que pela organização, realizar aquilo que nos determinamos faz crescer dentro de nós uma autoconfiança que nos possibilitará mais a frente modificar áreas muito profundas no nosso inconsciente. É necessário que se tenha muita disciplina e auto-superação, pois caso você tenha se comprometido e não cumprido, gera-se o efeito contrário e você passará a acreditar menos em sua capacidade de melhorar-se.
Quando começamos a perceber aquilo que dentro de nós não é vontade própria e sim imposição do meio social que vivemos já demos o primeiro passo para a liberdade. Tendo força e confiança para modificar aquilo que queremos, passamos a deixar os leitos dos condicionamentos mais rasos. Os vasánas se tornam mais controlados até o ponto de serem apenas samskáras (impressões). Nesse ponto o ato deixa de ser um condicionamento conduzido por forças do inconsciente e passa a ser uma vontade que só se realizará com uma decisão lúcida que pesou prós e contras.

Nesse estágio podemos realmente escolher, sem agir pela tendência. Com grande liberdade de escolha será fácil a atuar em nosso karma (destino) e fazer da vida aquilo que bem entendermos. Deixando de seguir aquilo que foi determinado para você ser para manifestar o que você deseja no mais fundo do seu âmago.

Comentários

  1. Nossa que artigo maravilhoso!
    É impressionante como primeiro fazemos nossos hábitos e depois nosso hábitos nos fazem. Tem pessoas que reclamam da sua rotina mas é porque chegaram num tal nível de condicionamento que não regem mais sua própria vida, mas não tem consciência de que eles a escolheram. Com relação à isso gosto muito de uma frase do ilustre administrador Abílio Diniz: adoro minha rotina, pois eu mesmo a criei.
    Imagine como você gostaria que fosse sua vida.... e ponha em prática!

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