ELA

Ela caminhava de forma estranha. Atravessava os corredores frios e emborrachados do hospital de maneira diferente do que fazia há alguns meses. Era como se os passos não buscassem mais uma direção, seguiam-se simplesmente por uma continuidade, que podia acabar a qualquer momento. Eu não conseguia olhá-la nos olhos. Doía vê-la magra e frágil, sem usar lenço na cabeça como faziam todas as outras mulheres condenadas por aquela doença.
- Como foi hoje mãe?
- Acho que daqui para frente vai ser sempre igual ou pior. Não há muito o que mudar.
- Que bom que você não sentiu enjôo, nem tontura.
- Eu queria mesmo, não ter sentido nada. Falei para você que essa coisa de quimio não ia adiantar. Seria mais fácil eu morrer em paz, sem incomodação.
- Mãe a gente precisava tentar alguma coisa.
- Cheguei até a acreditar nisso, mas falei que não ia dar certo.
- Vamos para o quarto.




O quarto do hospital, não era diferente de nenhum quarto de hospital. Até hoje, aquilo sempre fora um lugar de passagem, onde íamos para consertar algo que não ia bem. Ver aquela cama reclinável, o soro pendurado, a tv pequena e pensar naquilo como o local que ela passaria os últimos dias da sua vida era inaceitável.
- Mãe eu trouxe um jogo para nós.
- Jogo? Não. Prefiro ver tv.
- Mãe, jogo é bom. Pode fazer bem para você.
- O que pode fazer bem a alguém que tem os dias contados para morrer?
- Não fale assim. Há chances, o médico disse, você precisa lutar.

Tentava distrai-la com um jogo em que os pontos são somados a medida que se montam palavras com as letras aleatórias que se recebe no início. Dizem que o lúdico diz mais sobre nós mesmos do que o que expressamos verbalmente. Voltamos a ser crianças e assim espontâneos. Isso a ajudaria a por para fora o que lhe incomodava por dentro. Ela ajeitou o avental fino do hospital com certo desleixo. Viu que o laço ficara mal dado, mas como se aquilo não tivesse relevância alguma voltou a me olhar. Baixei a cabeça, ela tinha razão.
- Estou tentando usar alguma letra de CERTEZA para ganhar mais pontos, se for o T ou Z melhor ainda.
- Filho, tenho aprendido muita coisa. E uma delas é que a gente nunca pode ter certeza de nada. Talvez você pudesse usar o T e compor MORTE, a única certeza da vida.
- Mãe, não gosto quando você fala assim.
- Sei.
- Então, vamos mudar de assunto. Você vai ver sua amiga Didi hoje?
- Sempre temi a morte, mas cada vez, tenho mais claro que ela é justamente o que dá sentido à vida. É por ela que a gente luta tanto. Que graça teria isso tudo se soubéssemos que nunca ia acabar.
- Não sei, mas seria menos sofrido.
- Esses dias eu estava aqui a tarde vendo tv e tava passando um filme de vampiros. Filho, você não faz idéia. A vida deles é muito chata, eles não morrem nunca. Não tem motivação, a coisa não anda, sabe? Daí entra aquelas palhaçadas de filme, de chupar sangue e blábláblá, mas a vida deles continua um tédio.
- Mãe para com essa filosofia barata de filme de sessão da tarde. A sua vida vai melhorar, mas você precisava fazer um pouco de força também.

Ela sempre fora uma pessoa positiva, sempre progetara uma imagem de felicidade para as outras pessoas. Talvez, aquilo fosse uma forma de esconder uma tristeza profunda que ela nunca deixou transparecer, a não ser quando bebia um pouco mais. Parecia mais tranquila nos últimos dias. Aquela euforia que sempre a acompanhara extinguira-se, a tristeza também. Era o que me amedrontava, ela já tinha aceitado tudo.
- O que você vai fazer com a casa?
- Você fala como se já estivesse morta.
- E por acaso se eu não falar da morte vou evitá-la?
- Não é isso, mas é desagradável.
- Falemos de coisas agradáveis então. Quem vem me visitar amanhã?
- Ainda não sei, talvez eu não possa.

Suas mãos estavam ressequidas e movimentavam as peças sem vontade. Ela tira letras, põe outras e com o T de CERTEZA completa MOTIVO.
- Era isso que eu queria saber.
- O que? Quantos pontos?
- Não a palavra.
- Não sei o que você está falando - mas eu sabia.
- Não precisa se fazer de louco.
- Você acha que está sendo fácil para mim mãe?
- Mas é isso que estou dizendo? Por que você deixou tudo mais difícil para todo mundo? Por que você me obrigou a fazer esse tratamento?
- Mãe, você faria o mesmo se fosse comigo.
- Você sempre fez o que bem quis da sua vida. O que você fez quando eu pedi para você não ir para fora?
- Mãe. Imagino que deva estar sendo difícil, mas você precisa continuar lutando. Você vai sair dessa. Tenho certeza.
- Não vou. E sabe porque?
- Não.
- Porque a vida é superestimada. Lutar pela vida até não aguentar mais é coisa de gente medrosa. Gente que não tem coragem de aceitar o que de fato está acontecendo.
- Tá bom. E existe algo maior para se lutar do que a vida?
- Não sei, mas brigar sem chances de vencer é coisa de gente lunática, arrogante. Eu já sei onde estou. E foi você que fez eu chegar aqui. Se seu objetivo era estender minha vida, por um preciosismo seu, parabéns, você conseguiu, mas agora acabou.
- A é, e o que você vai fazer? Se jogar da janela?

Passo pela sala onde estão as pacientes em estado terminal. Não conseguirei ver minha mãe assim. Ela precisa reagir, precisa fazer uma força para sair dessa. Ela é forte, isso é passageiro. Não acredito nesse médico. Médicos só falam merda. Eles não sabem o que é sofrer e o que somos capazes.

Vou ter que consertar isso. Não sei por onde começar. Talvez na internet eu ache alguma coisa. Chegando em casa eu vejo isso. Mas poderia ser de outro jeito, ela vai se recuperar, minha mãe é forte, eu sei. Ela está sofrendo, e isso não pode mais continuar assim.

Abri o computador e como no jogo das palavras, as letras começaram a se juntar na tela, quase que magicamente, até formarem - injeção letal.


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